Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 13, 2007

Entrevista: Armínio Fraga

Viciados em Estado

O ex-presidente do Banco Central lamenta
o retrocesso das reformas econômicas e
diz que os brasileiros precisam independer
dos governos


Giuliano Guandalini

Oscar Cabral

"Ainda vejo no país essa mentalidade de raízes ibéricas, de esperar que a mãe governo cuide de todos os nossos problemas. Isso precisa mudar"

"Faz parte da nossa cultura ibérica gostar do afago do Estado. Mas, como escreveu Eça de Queiroz, a mãe governo é pobre; como é pobre, paga pouco, e essa pobreza vai se perpetuando." Com essa constatação, o economista Armínio Fraga defende que os brasileiros cortem seus laços de dependência de favores, subsídios e esmolas do Estado. Só assim, segundo ele, serão livres para gerar riquezas e a economia perderá a apatia que já dura duas décadas. Fraga presidiu o Banco Central (BC) de 1999 a 2002, quando ajudou a escrever um capítulo decisivo da história econômica recente do país. À frente do BC, introduziu o sistema de metas de inflação e o câmbio flutuante, peças centrais da engrenagem que hoje permite ao Brasil amortecer as intempéries financeiras. Aos 49 anos, ele teme que o governo atual perca, neste início de segundo mandato e em meio a um momento raro de prosperidade mundial, sua última oportunidade para concluir a segunda geração de reformas – justamente a que, ao reduzir o tamanho do Estado, tornaria o país mais independente da "mãe governo". Atualmente, Fraga administra 2,8 bilhões de dólares no fundo Gávea de investimentos, empresa que abriu depois de deixar o governo.

Veja – O mundo vive a maior fase de prosperidade econômica em mais de trinta anos. Até quando o cenário externo soprará a favor?
Fraga – A incorporação de bilhões de novos consumidores ao mercado global com o despertar da China e da Índia é um evento auspicioso e histórico, capaz de sustentar por um bom tempo essa fase de expansão. Portanto, não vejo sérios riscos em um cenário mais amplo. Mas existem algumas nuvens no horizonte, sobretudo nos Estados Unidos, por causa do enorme déficit na balança comercial e da bolha de preços no mercado imobiliário. Uma eventual recessão americana teria repercussões em todo o mundo.

Veja – O dólar pode mesmo perder sua preponderância nos mercados mundiais?
Fraga –
Os dados mais recentes indicam que o euro já tem ocupado uma parte significativa nas reservas dos bancos centrais de todo o mundo. Mais adiante poderá surgir também uma moeda dominante na Ásia, provavelmente o iuane, da China. Portanto, talvez o dólar perca no futuro sua posição como a principal reserva de valor internacional. Mas vai demorar para que isso ocorra. A moeda americana continuará reinando por um bom tempo.

Veja – Apesar da bonança internacional, o PIB brasileiro tem avançado pouco. O governo Lula deverá anunciar um plano para acelerar seu crescimento – o PAC. Vai funcionar?
Fraga –
Espero que sim. Mas, pelo que foi divulgado até o momento, acho que não. Crescimento duradouro requer melhora na educação, eficiência nos gastos públicos e mais investimentos. Em resumo, precisa ocorrer um ganho de produtividade e de competitividade. Não vejo o atual governo debruçando-se sobre as reais questões que estimulam os investimentos e levam ao desenvolvimento. Não se fala em reduzir o tamanho do Estado, que sufoca a iniciativa privada. Outro passo fundamental, também ignorado até agora, seria promover as reformas que aprimorariam o ambiente de negócios, como a tributária e a trabalhista. Sem isso podemos ter um ou outro ano bom, mas isso não pode ser confundido com desenvolvimento. Tenho medo, neste momento, de que se perca uma importante janela de oportunidades. Os governos deveriam aproveitar os bons momentos e o começo de mandato para avançar na agenda de reformas. Mas, infelizmente, é raro que isso aconteça. Quando se dão conta do que poderia ter sido feito, não dá mais tempo. O governo parece não ter a visão necessária para enfrentar as verdadeiras travas ao crescimento, que são o gigantismo do Estado e a baixa produtividade da economia.

Veja – Como é possível elevar a produtividade?
Fraga – Em primeiro lugar, investindo em educação. Sem capital humano o país não vai produzir mercadorias de maior valor agregado e não terá como competir num mercado globalizado. O governo atual não mostrou coragem para gastar menos com educação superior e mais com educação básica nem introduziu elementos de concorrência para melhorar a qualidade do ensino, com promoções vinculadas ao mérito. Mas não é só isso. É preciso também criar condições para que a poupança e o investimento aumentem, além de abrir mais a economia à concorrência internacional. Isso sem falar de uma reforma tributária que diminua a informalidade e a carga daqueles que pagam impostos.

Veja – Entidades empresariais e economistas ligados ao PT dizem que basta reduzir os juros e depreciar o câmbio para a economia decolar.
Fraga – Discordo. O crescimento não virá por decreto e os juros não cairão por vontade política. Essa proposta "desenvolvimentista" não faz sentido. Aliás, quem é contra o desenvolvimento? Essa corrente não se preocupa com as reais fontes do crescimento. É desejável, sim, que tenhamos juros mais baixos. Mas, se isso for feito de forma súbita e desancorada da realidade da economia, vamos crescer por alguns trimestres e depois virão a ressaca inflacionária e a recessão. Não dá para crescer sem poupar e investir. Não dá para crescer sem educar. Não dá para crescer com a economia desordenada.

Veja – Mas a China e outros asiáticos são usados como exemplos de países que exportam e crescem muito por causa do câmbio desvalorizado.
Fraga –
É ingênuo e simplista achar que apenas a política de câmbio vai acelerar o crescimento. Esses países mantiveram taxa de poupança elevadíssima ao longo de muitos anos. Na China, ela supera 40% do PIB. No Brasil, mal passa de 20%. Aqui, porque o setor público arrecada muito e queima quase tudo com gastos correntes, em vez de educação primária e infra-estrutura. Costumo dar o exemplo da Coréia do Sul. Há 25 anos, os coreanos tinham uma renda per capita inferior à brasileira. Hoje é o triplo da nossa. Eles investem em média 33% do PIB por ano. No Brasil, essa taxa é de 20%. A escolaridade média deles é mais que o dobro da brasileira.

Veja – O senhor já foi do governo. Por que é difícil transformar diagnósticos como esse em ações?
Fraga –
Porque no governo não basta capacidade técnica. É preciso convencer a sociedade e, em particular, os políticos a tomar decisões difíceis e que muitas vezes não dão frutos a curto prazo. É preciso enfrentar interesses particulares que se contrapõem ao bem do país como um todo. Em política as coisas não são tão nítidas quanto no mercado financeiro. Há pressões de todos os lados. São pequenos grupos, às vezes não tão pequenos assim, que buscam defender os seus interesses de maneiras visíveis e invisíveis. É uma briga inglória. A maioria é silenciosa, ao passo que esses grupos esperneiam, fazem lobby, ganham espaço na mídia e com isso abocanham fatias do Orçamento e postergam reformas.

Veja – Em que aspectos econômicos o Brasil avançou nos últimos anos?
Fraga –
Em vários. A estabilidade econômica trouxe a queda da inflação e a redução dos juros, o que despertou uma série de negócios. É muito interessante a mudança radical que está ocorrendo no mercado de capitais. A bolsa de valores perdeu aquela imagem de cassino. Passou a assumir sua função de financiar os investimentos produtivos. Se as empresas são bem administradas, elas conseguem atrair capital para investir, contratar gente, crescer. O mercado imobiliário caminha nesse sentido; houve um grande salto nos financiamentos. Mas o Brasil ainda precisa passar por outras revoluções culturais.

Veja – Quais seriam essas revoluções?
Fraga –
Uma delas já começou a pegar, mas ainda de forma incipiente: a idéia de que é bom fazer parte do mundo. Hoje o brasileiro pensa em exportar e vê isso como oportunidade. A revolução mais urgente, no entanto, é cultural. Requer uma mudança de atitude em relação ao Estado. Os brasileiros e suas empresas precisam aprender a depender menos do governo. Ainda vejo essa mentalidade que é própria das raízes ibéricas, de esperar que a mãe governo cuide de todos os nossos problemas. Mas, como escreveu Eça de Queiroz, a mãe governo é pobre; como é pobre, paga pouco, e essa pobreza vai se perpetuando. O triste é que, ao que parece, estamos retrocedendo nesse item. A campanha eleitoral para o segundo turno, por exemplo, foi marcada pela crucificação das privatizações. A agenda de reformas liberais apanhou muito.

Veja – A que o senhor atribui esse retrocesso?
Fraga –
A agenda liberal sempre apanha porque ela melhora a vida de muitos, de maneira difusa, e prejudica grupos organizados. Quem usa o celular deveria se lembrar de que só tem o aparelho graças às privatizações. O mesmo vale para a internet. Quantos pequenos negócios não foram viabilizados por causa dos celulares e da internet? Mas não tenho ilusões. Não acredito num modelo liberal radical para o Brasil, não combina muito com o que vejo por aí. O brasileiro gosta de Estado. É da nossa cultura, e eu mesmo não acho razoável pensar num Estado minimalista. .Mas isso não quer dizer que alguns aspectos de uma agenda liberal não possam ser implementados. Deveríamos ter um governo mais enxuto e eficiente, com uma economia mais livre e mais bem regulada. Não dá para imaginar que o país vá crescer sem que essas questões sejam abordadas. A riqueza não brota da terra, mesmo quando brota da terra. Senão o petróleo resolveria os problemas sociais do Rio de Janeiro.

Veja – Aliás, por que o petróleo não resolve o problema dos cariocas?
Fraga –
Parece ser um caso da maldição dos estados ricos em recursos naturais e pobres em avanços sociais. A verdade é que o Rio nunca se recuperou de ter perdido o status de capital federal. A cidade era um centro econômico, financeiro, político e cultural. Nasci em Botafogo e fui criado no Jardim Botânico; acompanhei essa crise de identidade. A cidade está buscando um caminho, mas não tem sido fácil. Nem com os recursos do petróleo. Vive um problema seriíssimo que é achar uma nova vocação. A questão da segurança é dramática. Os jovens não dispõem de oportunidades. Temos boas escolas e universidades, mas, como não há empregos aqui no Rio, eles acabam se mudando para outras cidades. É enorme o número de profissionais que vão para São Paulo – quando não para fora do país. Tomara que o novo governador encontre um caminho para o Rio de Janeiro.

Veja – O que mudou no sistema financeiro internacional entre sua experiência como investidor de George Soros, na década passada, e hoje?
Fraga –
Tornou-se mais difícil ganhar dinheiro no mercado internacional. Antigamente muitos países tinham regimes de câmbio fixo, o que estimulava o ataque especulativo de grandes fundos e bancos estrangeiros. Hoje as economias são mais sólidas e já não há tantas brechas. A maioria dos emergentes tem políticas fiscais boas e câmbio flutuante. Além disso, os mercados tornaram-se mais eficientes. Todos os participantes recebem as informações quase que simultaneamente. A concorrência ficou bem maior. Nos seis anos em que trabalhei com Soros, minha função era investir nos mercados emergentes. Foi um período de grande turbulência. Houve a crise do México, a asiática e depois a russa. Com isso, conheci de perto mais de vinte países. Via claramente que alguns deles caminhavam para o colapso e observei como lidaram com as dificuldades. Ficaram claras ali as vantagens de ter transparência na condução da economia. Em 1999, quando fui para o governo, levei comigo essa lição.

Veja – O senhor enfrentou várias crises na presidência do Banco Central. Qual foi a pior?
Fraga –
Foi a de 2002, sem dúvida, porque aconteceu puramente pela insegurança dos investidores diante da possibilidade de vitória do PT. Não havia nada que pudéssemos fazer para reverter as expectativas. Quando ficou claro que dificilmente Lula perderia a eleição, o mercado congelou. Os investidores se negavam a comprar títulos da dívida pública. Isso já acontecera anteriormente, mas, daquela vez, a crise não respondia ao tratamento convencional. Os investidores nos diziam que não havia nada que pudéssemos fazer para conter a fuga de dólares. Às vezes eu me perguntava se o PT tinha mesmo um plano econômico maluco e perdia o sono imaginando como faríamos para levar o país até o fim do governo. O que tornou a situação mais difícil foi que, diferentemente de hoje, o mundo passava por uma severa redução da liquidez financeira.

Veja – O presidente Lula afirmou que herdou uma economia quebrada e que o senhor teria dito a ele, em 2002, que o país estava na UTI.
Fraga –
É verdade, mas o presidente esqueceu-se de mencionar uma coisa: eu também disse a ele que não havia motivos para o país estar na UTI e que estavam nas mãos dele os instrumentos para reverter aquela situação. Foi o que acabou ocorrendo. O PT, pelo seu passado, gerou a crise, mas Lula teve o mérito de conquistar a confiança de investidores e credores. Tive a oportunidade de conversar com Lula duas vezes, ainda em 2002, e fiquei com a impressão de que ele é muito pragmático. Isso ficou claro quando ele não pôs em prática a plataforma histórica do PT. Lula entende que a estabilidade é positiva para os mais pobres. Sua decisão pessoal de indicar Antonio Palocci para ministro da Fazenda gerou um enorme crédito. Outro ponto positivo foi a autonomia operacional concedida ao BC. Longe de interferências políticas, o BC tem mais condições de reduzir os juros.

Veja – Quando ficou claro para o senhor que Lula adotaria uma política econômica sensata?
Fraga –
Foi em agosto de 2002. No fim de uma reunião com Lula então candidato, Palocci me chamou e disse que precisava falar comigo. Marcamos um encontro no Hotel Glória, no Rio. A conversa foi uma surpresa maravilhosa. Naquela noite dormi tranqüilo pela primeira vez em semanas. Palocci afirmou que, se eleito, Lula seria pragmático e realista, não faria pirotecnias. Por coincidência, no instante em que o PT deu essa guinada, o panorama internacional começou a melhorar. Ali teve início a atual fase de rápido crescimento, baixos juros e farta liquidez, o que ajudou muito. Já são quatro anos de festa na economia global.

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