Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, janeiro 10, 2007

As férias do ‘seu’ Lula José Nêumanne


Quando, neste Brasil pós-petista, o Caos Aéreo Nacional encheu os aeroportos brasileiros de dor, raiva e indignação, só um avião teve o privilégio de decolar e pousar na hora certa: o Aerolula. Enquanto os passageiros sem Bolsa-Família se “acomodavam” para dormir no chão das estações, que, mesmo recebendo prioridade em detrimento de equipamentos e pessoal de controle e operação, não são lá grande coisa, se comparadas com as do resto do mundo, o presidente da República, em seu brinquedo favorito, divertia-se fazendo e desfazendo sonhos ministeriais. Mas até essa azáfama o cansou e ele tirou férias. Primo fare niente, doppo riposare, lembrou este jornal em editorial, citando o dito popular peninsular que o pernambucano (portanto, conterrâneo de Lula) Ascenso Ferreira glosou no poema Filosofia:

“Hora de comer - comer!

Hora de dormir - dormir!

Hora de vadiar - vadiar!

Hora de trabalhar?

Pernas pro ar, que ninguém é de ferro!”

Este é o sonho de muitos, de quase todos, mas só alguns eleitos, em menor número que os do Evangelho, podem realizá-lo. E Sua Excelência, eleito com mais de 20 milhões de votos sobre o candidato adversário, sente-se no direito de levá-lo às últimas conseqüências.

Os críticos recalcitrantes e mal-humorados da elite empedernida encontrarão nos que contestam esse direito, dado ao chefe do governo pelos eleitores, um abuso. Não tanto um abuso de autoridade, mas, digamos, um abuso de propriedade. Afinal, um dos slogans da campanha da qual ele saiu reeleito era: “Deixem o homem trabalhar.” Às ordens, cavalheiro! Reeleito, contudo, prefere fazer nada e depois repousar, que não é de ferro, mas um filho de Deus, de carne e osso. Ou seja: o “homem” do slogan pode entrar de vez no livro de recordes da Guinness, por ser o primeiro trabalhador a merecer o gozo de férias na primeira semana de expediente, na prática antes de pegar no batente. Tente fazer isso no emprego novo, caro leitor, mas não espere muita simpatia do patrão. Só que o patrão do presidente, o tal povo brasileiro, é manso de coração e parece não se aborrecer com essa inversão de atividades do escolhido para reger seu destino.

Esse patrão dificilmente terá lido o livro em que o ex-presidente americano Richard Nixon dizia, com razão e lucidez, que todo estadista deve tirar férias, pois o cansaço pelo exercício das pesadas responsabilidades do poder republicano é o pior conselheiro de um governante. Não se sabe se Nixon estava bem repousado quando decretou a retirada das tropas do Vietnã, entrando pela porta da frente da História. E se foi o cansaço que o fez não dar a devida relevância ao arrombamento do escritório do adversário democrata derrotado, George McGovern, em Watergate, que provocou sua retirada pela janela do porão da Casa Branca. Sabe-se, porém, que o repouso remunerado não resulta de um gesto de caridade cristã, mas do pragmatismo capitalista para produzir mais, melhor e com mais lucro. Duro é saber o que tem estressado tanto nosso amado guia: a disputa entre os amigos Chinaglia e Rebelo pela presidência da Câmara; o apetite dos companheiros petistas pelas boquinhas republicanas; a decisão do advogado Márcio de deixar o Ministério da Justiça; ou a volta do aloprado-chefe Berzoini à presidência do partido de Dirceu, Genoino, Delúbio e Silvinho? Ou será a súbita incompetência da Polícia Federal em enquadrar Waldomiro Diniz e descobrir a origem do dinheiro para financiar o dossiê antitucano, hein?

Certo é que a decisão de repousar antes de trabalhar é tão original que impediu o elogiado amigo José Alencar de assumir a Presidência em sua ausência. Embora dificilmente a Nação sinta muita falta de uma gestão alencarina, não deixa de ser, no mínimo, interessante que, tão pródigos em encontrar meios de levar vantagem em tudo, nossos políticos tenham deixado para um ex-trabalhador braçal a honra de inaugurar o repouso do guerreiro antes, e não depois, da batalha. O professor de Lógica no Instituto Redentorista Santos Anjos, em Bodocongó, Campina Grande, Paraíba, nos anos 60, o implacável e aristotélico holandês padre Bernardo, na certa diria: “Et pour cause.” Ex-dirigente sindical da escola getulista, Lula é pioneiro nessa inversão, ao conjugar o verbo descansar antes de se cansar, e, depois, se possível, cansar-se o mínimo, como naquele pacto jocoso do poeta Vinicius de Moraes com o cronista Antônio Maria: jamais fazer um movimento que não seja absolutamente necessário.

A inovação implica algum risco, pois sempre haverá um espírito de porco a observar que o País pode funcionar normalmente sem o concurso do chefe do governo, embora haja quem jure que, mesmo quando nos dá a honra do expediente, este não pareça muito predisposto à ação efetiva. E também lembra o clássico da comédia cinematográfica As férias de Monsieur Hulot, em que o taciturno e trapalhão francês Jacques Tati faz uma crítica pesada e bem-humorada destes tempos de automação e insensibilidade. Mas a lembrança do sujeito alto, magro e desengonçado com capa, guarda-chuva e chapéu na tela de cinema ocorre por oposição: um gaiato, neste Brasil de palhaços inatos e irreverentes, poderá lembrar que, de fato, o presidente não goza férias, mas teve a extrema bondade de dar folga a nossos ouvidos. Na praia, ele fica não apenas longe do gabinete e do Aerolula, mas também dos microfones e das câmeras, diante dos quais costuma promover ousadas distorções na geografia, na história, na lógica e na gramática. Isso, é claro, sem mudar o fato de que, com as estradas esburacadas, os assaltos na Linha Vermelha e a operação tartaruga dos controladores de vôo, ele se tornou o único brasileiro a gozar férias integrais em paz e segurança.

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