Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 30, 2007

A lambança que resultou em duas metas

O desafio do alongamento

Ao ser um pouquinho mais tolerante com a inflação,
o Conselho Monetário Nacional esqueceu o motivo
que trouxe de volta os investimentos


Giuliano Guandalini

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Não valia muito a pena para um investidor fazer negócios no Brasil. Essa foi a tônica das últimas três décadas. Por uma razão simples: com a taxa de juro nas nuvens e a sensação iminente de que a inflação um dia voltaria, era mais seguro e rentável emprestar dinheiro ao governo ou investir em outras paragens. Secaram os investimentos em estradas, faculdades, siderúrgicas, hospitais e hidrelétricas. Da classe empresarial à classe média, todos queriam ser credores do governo, num parasitismo financeiro que imobilizou o país. Por que investir 100 milhões de reais para erguer um supermercado ou uma fábrica se o retorno previsto, de cerca de 8 milhões de reais ao ano, era a metade do lucro que os papéis do governo proporcionavam – e sem riscos? Esse quadro mudou com o controle da inflação. Foi um processo custoso. Em um primeiro momento, os juros mantiveram-se altos para mostrar a determinação do governo de segurar a fera inflacionária. Aos poucos, à medida que empresários e consumidores perceberam que a determinação do Banco Central era para valer, as taxas de juro puderam cair sem que os preços subissem. Hoje, por um ínfimo porcentual, já vale mais a pena investir em produção do que em papéis do governo. O capitalismo começou a renascer – ou nascer – no Brasil.

Ed Ferreira/AE
O ministro Mantega: meta mais flexível

Na semana passada, porém, o governo perdeu uma chance de ouro de consolidar de vez essa conquista. Ao fixar as metas de inflação para os próximos dois anos, o Conselho Monetário Nacional (CMN) decidiu que o país pode ter uma inflação de 4,5% ao ano – acima da expectativa dos analistas econômicos, que projetam uma alta inferior a 4%. Para um país que já teve hiperinflação de 80% ao mês, por que esse meio ponto porcentual gerou tanta controvérsia? Que diferença faz ter 4% de inflação anual ou 4,5%? A diferença é insignificante apenas na aparência. Ela lembra a história do homem preso em um tanque com água pelo queixo. Basta que a lâmina d'água suba apenas mais 5 centímetros para ele se afogar. Em um mundo de finanças integradas, com margens ínfimas de lucros nos investimentos e amplas oportunidades se oferecendo pelos cinco continentes, ter 0,5% de inflação a mais quando se pode ter 0,5% de inflação a menos tem grandes conseqüências para toda a economia.

O impacto, em primeiro lugar, atinge os cofres públicos. Inflação maior significa mais gastos com aposentadorias e juros (veja quadro). Depois, a onda de choque pega em cheio a renda dos assalariados. Uma inflação 0,5% maior, se mantida por vinte anos, representa uma perda no poder de compra superior a 10%. Sem que o poder de compra das pessoas seja preservado, o consumo é afetado e mina o potencial de crescimento de longo prazo. Por isso os economistas defendiam uma redução na meta, para que a inflação no país pudesse convergir para patamares mais próximos aos dos países avançados – que perseguem como alvo uma inflação anual em torno de 2%. O Brasil adota o sistema de metas desde 1999. Quem define as metas de inflação no país, em tese e pela legislação vigente, é o Conselho Monetário Nacional. Fazem parte desse conselho o ministro da Fazenda, Guido Mantega, o do Planejamento, Paulo Bernardo, e o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles. Cada um de seus integrantes tem direito a um voto, de igual peso. Mas, na prática, não foi o que ocorreu. Tanto Bernardo como Meirelles eram favoráveis a uma redução da meta para 4%. Como formam maioria no conselho, Bernardo e Meirelles teriam o poder de impor essa opção a Mantega, defensor de uma meta mais flexível. Por inspiração do presidente Lula, venceu a meta mais flexível. Isso significa que o Brasil vai ter uma inflação maior a partir de 2008? Não necessariamente. Meirelles tem se esforçado para reduzir o estrago dessa lambança na credibilidade duramente conquistada pelo BC. Ele admite que uma meta de 4% teria sido mais adequada, mas assegura ter recebido do CMN a autorização formal para perseguir uma meta inferior aos 4,5%.

Compreende-se o esforço de Meirelles. Cabe a ele tranqüilizar os mercados e mostrar que ainda está no comando do jogo. Isso traz à luz um problema de outra natureza, a dualidade de metas. Pode um goleiro defender dois gols ao mesmo tempo? A política monetária de um país pode ter duas caras?

"A decisão do CMN, dividida como foi, indica que o sistema de metas de inflação pode estar perdendo algo que o BC alcançou com grande sacrifício, que é a própria credibilidade do sistema de metas de inflação. Qual o sentido de anunciar uma meta que não será perseguida?", pergunta o economista Márcio Garcia, professor da PUC do Rio de Janeiro. "A condução da política econômica tem se deteriorado desde o ano passado, e a decisão da última semana só reforça essa tendência. Um dia os mercados vão notar isso." Por ora, em um mundo inundado por uma liquidez financeira sem precedentes, os mercados têm exercitado um alto nível de tolerância e a dualidade brasileira não trará impactos mais fortes. Se a maré baixar, as coisas tendem a se complicar.

Caio Guatelli/Folha Imagem
Meirelles, do BC: ele vai perseguir sua própria meta
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