Nos últimos dias, pronunciamentos dos presidentes Lula, do Brasil, e Vladimir Putin, da Rússia, sobre a democracia, que mostram bem como são confusos os conceitos dos dirigentes desses dois dos mais importantes países emergentes do mundo, trouxeram preocupações ao meio político brasileiro.
Coincidentemente, embora em circunstâncias distintas, as declarações foram feitas nas proximidades da reunião do G-8 na Alemanha. O B e o R do Bric, a sigla que denomina possíveis futuras potências mundiais (além de Brasil e Rússia, Índia e China), buscam lugar de destaque nos fóruns internacionais.
A Rússia já conseguiu entrar como membro permanente no clube dos grandes, que agora é G-7 + Rússia, ou G-8, mas não faz parte da Organização Mundial do Comércio, por exemplo.
O Brasil, um dos países convidados para a reunião, é uma liderança inconteste nas negociações comerciais internacionais, e busca um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, onde a Rússia já tem assento com poder de veto. O presidente da Rússia tem idéias muito próprias sobre o que seja democracia. Depois da tragédia da escola de Beslam, tomada em 2004 por separatistas chechenos, quando a ação de repressão provocou a morte de mais de 300 pessoas, a maioria crianças, Putin disse que a democracia é um regime que resulta em instabilidade.
Esta semana, ele se classificou como “o único” dirigente democrático do mundo.
Já o presidente Lula, questionado sobre a decisão do presidente da Venezuela de não renovar a concessão da rede de televisão RCTV, a mais popular do país, disse que ela era uma decisão “tão democrática” quanto seria a renovação, e mais adiante comparou a concessão televisiva a uma concessão de táxi. Anteriormente, ele já havia declarado que o problema da Venezuela é ter “democracia demais”.
O que une Rússia e Venezuela é que nesses dois países vigora o que a ciência política define hoje como o “hiper presidencial ismo”, uma ditadura disfarçada. E a última fronteira entre a hiperpresidência e a ditadura é a liberdade de imprensa. O presidente Lula confundiu o que é democrático com o que é legal, sem se dar conta, por desconhecimento ou esperteza política, que mesmo as ditaduras têm leis, que não são democráticas.
No prefácio que escrevi para a reedição da Nova Fronteira do livro “Os militares no poder”, de Carlos Castello Branco, relembro o episódio em que Castelinho relatou como os militares foram convencidos por políticos e juristas de que o “direito das revoluções” poderia gerar leis, e assim “o legalismo das Forças Armadas adquiriu novo dinamismo e novas dimensões (...) para se transformar em uma ação revolucionária, na medida em que gerou direito e reformou a Constituição”.
O hiperpresidencialismo, regime político caracterizado pelo excesso de poderes concedido pelo Congresso ao Executivo, é um fenômeno que se alastra pelo mundo e está em evidência tanto na Rússia quanto nos superpoderes que governos latinoamericanos como os de Argentina, Venezuela, Bolívia e Equador estão acumulando ou tentando acumular.
Segundo os professores Timothy Colton e Cindy Skach, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, que estudaram o caso da Rússia desde o nascedouro, pode-se aprender com ele que um país em processo de democratização, se não é capaz de construir maiorias legislativas genuínas e assegurar que seu presidente esteja integrado a um sistema partidário institucionalizado, terá um governo de minoria dividida, o que pode criar o caos político, ou fazer com que o Executivo se aproveite dessa fragmentação para estimular uma maioria circunstancial que favoreça a aprovação de sistemas autoritários.
Esse foi o caso da Rússia na Constituição de 1993, que deu superpoderes a Yeltsin.
A partir de 2000 a situação foi aprofundada por Vladimir Putin, que usou os poderes e prerrogativas para levar a Rússia em “direções autoritárias”, segundo Colton e Skach. Putin hoje se coloca acima dos partidos, e governa com uma maioria disforme e obediente.
Na América Latina, há exemplos preocupantes de governos se utilizando dos mecanismos democráticos para aprovar leis que lhes delegam superpoderes, transformando o Executivo em um poder acima dos outros poderes, fazendo com que o sistema democrático perca sua característica de contrapesos.
Desde 2004, quando o governo da Venezuela fez aprovar no Congresso uma Lei de Responsabilidade Social no Rádio e na Televisão, que o perigo nela contido era denunciado. A lei tinha entre seus objetivos teóricos oficiais garantir o respeito à liberdade de expressão e informação, sem censura, mas “dentro dos limites próprios de um Estado democrático e social de direito e de justiça”.
Do mesmo modo que, aqui no Brasil, o governo Lula já tentou diversas vezes controlar o fluxo de informações noticiosas e culturais, primeiro com a criação do Conselho Federal de Jornalismo, depois com o projeto da Ancinav e, mais recentemente, com a polêmica legislação de classificação indicativa para os programas de televisão e a criação de uma rede estatal de televisão.
O presidente Lula tem uma clara dificuldade de lidar com os meios de comunicação, o que se revela nas raras entrevistas coletivas que concedeu, e nos últimos dias voltou à carga, reclamando do noticiário sobre a criminalidade no país, culpando o mensageiro — os meios de comunicação — pela mensagem, que considera ruim para a imagem do país no exterior.
Em uma linguagem cada vez mais desabrida, Lula chegou a admitir que, se acontecer algum acidente durante os jogos Pan-Americanos no Rio, “vai tudo para as cucuias”. Mas, mesmo assim, se preocupa mais com as notícias do que com os fatos.
(Continua amanhã)
Entrevista:O Estado inteligente
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