Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 23, 2007

Renan enriqueceu na política

Há trinta anos, quando disputou a primeira eleição para
deputado, Renan tinha um Fusca. Hoje, o presidente
do Congresso é dono de uma fortuna conhecida
de 10 milhões de reais


Alexandre Oltramari

Fotos Anderson Schneider
Em 1982, Renan tinha uma modesta casa em Maceió (acima, à esq.). Hoje, entre suas propriedades, está uma mansão à beira-mar: ascensão notável


VEJA TAMBÉM
Nesta reportagem
Quadro: Menino pobre, senador rico

A suspeita de que um lobista pagava despesas do senador Renan Calheiros revelou dois aspectos desconhecidos de sua biografia. Um deles é seu extraordinário desempenho como pecuarista. Para provar que tinha renda para pagar 12.000 reais de pensão à jornalista Mônica Veloso, mãe de sua filha, Renan disse que ganhou 1,9 milhão de reais em quatro anos com venda de gado. Para tanto, suas vacas exibiram taxa de fecundidade maior que a dos melhores produtores nacionais, e a arroba de seus bois é vendida em Alagoas, estado assolado pela febre aftosa desde 2001, pelo maior valor do país. O outro aspecto novo é a notável capacidade do senador para, mesmo atuando sempre como político profissional, acumular uma fortuna respeitável. Na semana passada, VEJA visitou suas propriedades, entrevistou especialistas, cotejou valores e descobriu que seu patrimônio, declarado em 1,7 milhão de reais, é pelo menos 476% maior. Bate na casa dos 10 milhões de reais.

Renan Calheiros teve uma infância modesta em Murici, município de 21 600 habitantes a 50 quilômetros de Maceió. Um dos oito filhos de um pequeno produtor rural e uma dona-de-casa, Renan chegou a vender sandálias feitas com pneus velhos na década de 70, na época em que deixou a cidade para estudar direito em Maceió. Quando estreou na política, elegendo-se deputado estadual em 1978, tinha um Fusca. De lá para cá, ficou sem mandato durante apenas quatro anos, mas de todo modo, mesmo como pecuarista diletante, como fazendeiro nas horas vagas, tornou-se um homem milionário. É dono de três fazendas com 1.742 cabeças de gado. Tem um apartamento na orla de Maceió, casa à beira-mar na paradisíaca Barra de São Miguel e cinco caminhonetes de luxo. A pequena herança que recebeu -- ao morrer, o pai deixou 712 hectares para repartir entre oito filhos -- nunca foi incorporada ao seu patrimônio. Tudo o que Renan tem é resultado do seu, digamos assim, trabalho.

Até 2002, Renan vinha aumentando seu patrimônio num ritmo formidável, mas, aparentemente, compatível com seus rendimentos como político:

• Entre 1979 e 1982, enquanto exerceu um mandato de deputado estadual, Renan ganhou o equivalente a 6 700 reais por mês. Nesse período, seu patrimônio cresceu a um ritmo de 2.000 reais por mês. É uma economia possível para quem é capaz de poupar 30% de sua renda todo mês.

• Entre 1983 e 1990, como deputado federal, ganhou o equivalente a 12.265 reais por mês. Seu patrimônio cresceu a um ritmo de 8.000 reais por mês. É difícil, mas há quem consiga guardar 65% do salário.

• Entre 1991 e 1994, Renan não teve mandato. Por um ano, presidiu uma subsidiária da Petrobras por indicação do presidente Itamar Franco. Seu patrimônio, nesse período, refletindo a distância de um cargo eletivo, caiu de 880.000 reais para 755.000 reais.

• Entre 1995 e 2002, como senador, Renan recebeu 12.277 reais por mês. Seu patrimônio cresceu a um ritmo mensal de 8.800 reais. É quase impossível poupar 72% do salário. Mas os poupadores fenomenais chegam lá.

Até 2002, Renan não declarou ser dono de fazendas, nem de cabeças de gado. Tinha automóveis, uma casa, um apartamento e um flat -- nada que pudesse lhe proporcionar rendimentos estratosféricos. Mas, de 2002 em diante, a evolução de seu patrimônio entrou num ritmo galopante impossível de ser explicado por qualquer sacrifício no orçamento familiar. Recebendo 12.277 reais por mês no Senado, sua fortuna cresceu a um ritmo de 170.800 reais mensais. O senador sempre atribuiu sua ascensão financeira a rendimentos agropecuários. Mesmo que suas transações de venda de gado sejam verdadeiras, coisa que ainda carece de comprovação, é impossível enriquecer em um período tão curto vendendo bois. Será?

De acordo com o administrador de empresas Mauro Garcia, professor da Escola de Empreendedores da Universidade de Brasília (UnB), não há fórmula mágica para enriquecer em tempo recorde. Ainda assim, o professor destaca três características comuns em trajetórias meteóricas. A primeira é a dedicação extrema e exclusiva ao negócio. "É preciso muito suor, principalmente no início", diz. A segunda é atuar em um mercado inovador, como tecnologia da informação e telecomunicações. "Foi nessas áreas que se construíram as grandes fortunas nos últimos anos", afirma. O terceiro fator é uma postura revolucionária e inovadora numa área tradicional. "Um exemplo são essas empresas de lava-jato que operam sem usar água. É um negócio tradicional, mas que foi reinventado", diz o professor Garcia. Nada disso, como se sabe, aparece na empreitada bovina de Renan.

Em sua declaração de bens entregue à Justiça Eleitoral em 2002, Renan não diz possuir fazendas nem gado. Em 2003, porém, ele declara ter começado o ano com um estoque de 1.278 bois. De onde saíram esses bois? Com que dinheiro foram comprados? VEJA enviou esses questionamentos ao senador, por escrito, mas ele não respondeu. A dificuldade para justificar a origem de seus bens talvez explique o fato de o patrimônio de Renan estar quase todo subfaturado em suas declarações de renda -- o que, do ponto de vista tributário, não é irregular. Suas três fazendas, compradas a partir de 2003, teriam custado 880.000 reais, o que dá uma média de 605 reais por hectare. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) calcula o preço do hectare na região em 4.500 reais. Dois corretores de imóveis rurais disseram a VEJA que o hectare na região custa entre 5.000 e 7.000 reais. Alguém vende hectare por 600 reais?

"Tá sonhando? Isso não existe, não", espanta-se o corretor Tônio Campos, gerente da JC Consultoria Imobiliária, com quinze anos de experiência no mercado. Assim, as três fazendas que o senador diz ter comprado por 880.000 reais não custam menos de 6,8 milhões de reais. Seu apartamento em Maceió, declarado por 135.000 reais, é avaliado em 1 milhão de reais. A casa na Barra de São Miguel, declarada por 450.000 reais, vale mais de 1 milhão de reais. Por que alguém subfatura o valor de seus bens? Falando em tese, sem conhecer o caso específico, o tributarista Gilberto Amaral, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, responde: "Para adquirir um patrimônio, qualquer que seja ele, é preciso ter renda. A principal justificativa para o subfaturamento é a falta de origem lícita para o dinheiro".

Os bens subfaturados do senador, coincidentemente, são sempre comprados de amigos ou parentes. Uma fazenda foi adquirida de um irmão de criação, a outra de um primo, uma terceira de outro irmão. Uma de suas caminhonetes, uma Mitsubishi L200 ano 2006, foi comprada de um assessor no Senado, Everaldo França Ferro. Nesse caso, não há indício de subfaturamento. Os indícios são de coisa mais cabeluda. Ferro foi flagrado em grampo da Polícia Federal em uma conversa esquisita com o empreiteiro Zuleido Veras, preso pela Operação Navalha. A PF suspeita que os dois estivessem falando sobre uma propina que seria paga ao assessor do senador. Ferro não foi localizado por VEJA para comentar a suspeita.

Será que Renan enriqueceu terceirizando o pagamento de suas despesas? Quando precisava pagar a Mônica Veloso, acionava o lobista Gontijo. Em três entrevistas a VEJA, o ex-bicheiro alagoano Plínio Batista, amigo de infância de Renan e seu aliado até 2004, afirmou que também pagou despesas do senador. Diz que custeou parte de sua campanha ao Senado em 2002. "Comprei a Kombi para a campanha a pedido do Renan", declara Plínio Batista, exibindo fotos do veículo, placa MUD 5762, decorado com material de campanha de Renan e seu irmão Olavo. Ele também afirmou ter pago uma conta do senador de 30 000 reais, em dinheiro vivo. O dinheiro foi pago ao empresário Benezildo Moura, dono da gráfica Sian. "Sou amigo dos Calheiros, não quero entrar nesse assunto", disse o empresário a VEJA. Diante da insistência da revista, ele confirmou o pagamento. "Eram santinhos e cartazes do senador. Quem pagou foi o Plínio." Plínio Batista já comandou o jogo do bicho em Alagoas e foi preso duas vezes sob acusação de chefiar a contravenção e envolver-se com grupo de extermínio. Era só o que faltava. Além de ter contas pagas por lobista de empreiteiro, o senador contou também com recursos de bicheiro...

Fotos Heitor Hui, Anderson Schneide, Esther Carvalho/O Jornal e Cristiano Mariz
Certifica.com

Arquivo do blog