Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 16, 2007

VEJA Entrevista: Norman Lebrecht

Clássicos na UTI

O crítico inglês afirma que os discos de música
erudita já pertencem ao passado e que o gênero
terá de encontrar seu futuro na internet


Sérgio Martins

O crítico inglês Norman Lebrecht, 59 anos, é uma das personalidades mais temidas do mundo musical. Ele se destaca pelo retrato pouco romântico que faz dos bastidores da música erudita. Já contestou a importância do regente no livro O Mito do Maestro e ironizou as festividades em torno do aniversário de 250 anos do nascimento de Mozart. Sua obra mais recente, Maestros, Masterpieces and Madness (Maestros, Obras-Primas e Loucura), discorre sobre o desaparecimento iminente dos discos de música erudita e o impacto cultural desse acontecimento. O livro contém uma lista das 100 gravações mais influentes da história. O toque ácido fica por conta de um outro ranking, com os vinte piores discos de todos os tempos. "Até reuniões de gênios podem resultar em desastre", diz o autor. De sua casa, em Londres, Lebrecht falou a VEJA sobre a decadência das grandes gravadoras, sobre o papel dos maestros e sobre os compositores eruditos que merecem atenção no presente.

Veja – A música erudita está morrendo?
Lebrecht –
Não. São as gravações de música erudita que estão morrendo. Mas o significado cultural dessa perda é enorme. É algo assim como se Veneza afundasse nas águas, no meu entendimento. As gravações são uma atividade artística muito especial, diferente de um recital ou concerto ao vivo. Elas pedem outro tipo de disciplina, uma busca mais obstinada pela perfeição, pois qualquer deslize ficará registrado para sempre, sem disfarce. A era das gravações começou em 1902, com um disco de árias pelo tenor italiano Enrico Caruso, e agora está chegando ao seu final melancólico. Nesse meio tempo, ela tornou possível duas coisas. Primeiro, fez com que uma parcela fundamental de nossa civilização – as criações de Bach, de Haydn ou de Beethoven – se tornasse acessível a qualquer um, em qualquer lugar do planeta. Em segundo lugar, permitiu que nossa tradição fosse esmiuçada e reinterpretada como nunca antes, fazendo e desfazendo reputações, alterando o gosto musical continuamente. Enfim, não é a música que está morrendo, mas a maneira como as pessoas descobriram a música e conviveram com ela ao longo do último século. Não é pouca coisa.

Veja – O que levou a essa situação?
Lebrecht – Dois fatores: o impacto causado pela música pop e o desaparecimento de um certo tipo de executivo ligado às gravadoras de música erudita. Bastam alguns números para se ter uma idéia do primeiro fenômeno. Em 1965, um em cada quatro discos vendidos era de música erudita. Oito anos depois, à medida que as gravações de rock e outros gêneros de música pop se popularizavam, a proporção já havia caído para um em 25. Um único grupo de rock, os Beatles, vendeu 1,3 bilhão de discos ao redor do mundo em cerca de quarenta anos. Isso equivale ao total de vendas da música erudita em quase um século. Em outras palavras, foi cada vez mais difícil para as gravadoras manter-se saudáveis e preservar sua fatia de mercado. Mas as pessoas ligadas a essas gravadoras também tiveram culpa. Os pioneiros da era das gravações foram pessoas extraordinárias. Estou falando de personagens históricos como Elsa Schiller, ex-prisioneira de um campo de concentração que ajudou a criar a Deutsche Grammophon, o mais famoso entre os selos eruditos. À medida que essas pessoas se aposentavam, profissionais despidos de sensibilidade e imaginação as substituíam. O que fez Goddard Lieberson, lendário presidente da gravadora Columbia, com o primeiro grande lucro que obteve nos anos 60? Ele reinvestiu todo o dinheiro em música. Contatou o compositor russo Igor Stravinski e o convenceu a gravar toda a sua obra na companhia. Da mesma forma John Culshaw, da Decca Records, era tão fanático pelo ciclo O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, que financiou a gravação integral da obra pelo regente húngaro Georg Solti. Pois bem. Na década de 90, as companhias de discos viveram o boom do CD, quando todo mundo trocou sua coleção de vinis pelos compact discs. O que os novos diretores de gravadoras fizeram? Lançaram mais e mais do mesmo, sem pensar na inovação. Hoje existem 475 gravações de As Quatro Estações, de Vivaldi, e 275 Quintas Sinfonias, de Beethoven. Quem precisa de tudo isso?

Veja – Na literatura, costuma-se dizer que cada geração precisa de uma nova tradução de Homero ou Shakespeare. Não é natural que os clássicos sejam sempre revisitados?
Lebrecht – Há uma diferença entre repetição e reinterpretação. Eu não critico a reinterpretação. Apreciar a evolução das interpretações da Quinta de Beethoven, do regente Arthur Nikisch, em 1913, a Gustavo Dudamel, em 2005, é sem dúvida uma experiência extraordinária. Meu problema é com a repetição indiscriminada. Num mesmo ano recente, foram lançados três discos contendo a Quinta Sinfonia, de Anton Bruckner, e dois contendo Tristão e Isolda, de Wagner. A indústria ficou sem idéias, perdeu o controle e partiu para lançamentos sem critério artístico.

Veja – Há futuro para a música erudita?
Lebrecht – Sim, na internet. Em quatro ou cinco anos, creio que vamos desfrutar apresentações transmitidas pelo computador. As gravações também poderão ser distribuídas em formato digital, sem a intermediação de gravadoras. Infelizmente, muita coisa vai se perder até lá. Por exemplo: o regente de ascendência italiana Antonio Pappano, titular da Royal Opera House, liderou recentemente quatro récitas de O Anel dos Nibelungos. Não houve gravação em CD, muito menos em DVD. Ficarão apenas na memória de quem teve o privilégio de assistir a elas em Londres.

Veja – Seu livro mais recente contém duas listas: uma com as 100 melhores e outra com as vinte piores gravações já feitas. Qual é seu propósito com essas listas?
Lebrecht – A primeira lista não é exatamente sobre as "melhores" gravações, mas sobre as mais significativas, aquelas que deixaram uma marca e fizeram com que os discos eruditos se tornassem, ao longo do século XX, um artefato cultural tão importante. Discuto menos as qualidades intrínsecas da música do que as circunstâncias da gravação do disco e o seu impacto. Por exemplo, quando o alemão Fritz Kreisler gravou o Concerto para Violino de Beethoven com a Berlin State Opera, em 1926, mudou para sempre a maneira como se tocava violino, pois acrescentou um vibrato às passagens mais suaves da música para compensar as inadequações da reprodução sonora. Da mesma forma, o registro das Sonatas e Partitas para Violino de Bach, feito em 1973 por Nathan Milstein, levou muitos violinistas eminentes a jurar nunca tocar aquela música, pois parece impossível superar a performance de Milstein. Quanto à lista dos vinte piores discos, ela foi sobretudo uma diversão. Eu poderia facilmente ter listado cinqüenta. Novamente, o propósito não era apontar música ruim feita por músicos sem talento. Pelo contrário, queria mostrar que mesmo uma reunião de gênios pode resultar num desastre. É o caso da célebre gravação do Concerto Triplo de Beethoven feita pelo trio de ouro Richter, Oistrakh e Rostropovich em 1969, com Herbert von Karajan na regência. Os músicos não se entenderam, Karajan pressionou todos com a agenda de gravação e o resultado é que nenhuma nota do disco tem significado musical verdadeiro.

Veja – Se quisesse seduzir um novato para o mundo da música erudita, qual disco da sua lista de 100 recomendaria que ele ouvisse?
Lebrecht – O Concerto Duplo de Bach tocado por David e Igor Oistrakh, pai e filho. Você nunca encontrará um exemplo melhor da comunicação entre gerações do que nesse disco.

Veja – No livro O Mito do Maestro, o senhor diz que há muita mistificação em torno da figura do regente. O que faz um bom maestro?
Lebrecht – Além de seus outros pecados, a indústria musical ajudou a "estragar" os regentes. Ela os mimou demais, e muitos se sentiram como semideuses. É o caso de Herbert von Karajan, um artista talentoso mas de uma vaidade absurda, que dominou o mercado por quase meio século. O bom regente, na minha opinião, é aquele que coloca a sua personalidade numa orquestra. Eu não percebo isso num Daniel Barenboim, que passou mais de uma década à frente da Sinfônica de Chicago e não avançou nenhum milímetro em relação à época em que a orquestra era comandada por Georg Solti. Em compensação, poucos têm a personalidade de Lorin Maazel. Certa vez, Mariss Jansons, outro regente que admiro, foi ao meu programa de rádio. Ele disse que demorou cinco anos para se livrar da sombra de Maazel, seu antecessor na Sinfônica de Pittsburgh. A isso chamamos personalidade. Entre os novos, creio que o venezuelano Gustavo Dudamel fará uma carreira brilhante. Eu o vi algumas vezes e fiquei impressionado. Um spalla de uma das maiores orquestras do mundo me mandou um dia desses um e-mail com a seguinte frase: "Não compare Dudamel com nenhum outro regente. Em 60 anos de vida, jamais me vi diante de um músico tão fenomenal".

Veja – No século XX, a música erudita fugiu da melodia em busca do atonalismo. Isso afastou o público?
Lebrecht – O atonalismo foi inevitável. Ele ganhou corpo numa era de trauma e ruptura, o período da II Guerra Mundial, quando um grupo de compositores quis criar músicas que não tivessem relação com o passado. As platéias viram essa mudança como uma traição. Existia uma idéia de que artista e público tinham de andar lado a lado. Quando uma das partes muda de estilo e diz que não quer saber a opinião do público, cria-se um impasse. O atonalismo afugentou as platéias e essa rejeição atingiu muitos autores contemporâneos que faziam uma música menos atonal. Como o compositor checo Bohuslav Martinu, que sofreu uma rejeição sem precedentes sem de fato a merecer. Hoje em dia, acho que artistas e platéias estão menos radicais. Pode-se saborear as obras de um artista como o argentino Osvaldo Golijov, que tem uma música ousada, mas sem atonalismo.

Veja – Qual é o papel desempenhado pela crítica na música erudita?
Lebrecht – Infelizmente, a imprensa musical é parte da crise da música erudita. Ela se tornou pouco confiável ao longo dos anos e está comprometida com as gravadoras. Tomemos uma publicação respeitada como a Gramophone. Seu editor se orgulha de jamais ter publicado uma crítica negativa – e acho pouco provável que tenham sido lançados apenas discos sensacionais. Além disso, é comum que os editores mostrem as resenhas aos executivos das gravadoras antes de elas serem publicadas. É uma traição ao público.

Veja – É possível trazer os jovens de volta às platéias de concertos?
Lebrecht – Seria necessário mostrar a eles que a música erudita pode ser tão vibrante quanto um concerto de rock – e nós sabemos que ela pode. Formou-se um círculo vicioso. Os jovens não querem ir a um local em que o público tem a mesma idade de seu pai ou de seu avô, e com isso se perpetua a idéia de que a música erudita é algo formal e envelhecido. É uma pena, porque o envelhecimento das platéias também se reflete nos artistas. Outro dia, a violinista Anne-Sophie Mutter declarou que pensa em se aposentar. Ela tem apenas 44 anos, poderia ter mais três décadas de atividade. Mas a decisão dela é compreensível se pensarmos que Anne-Sophie toca sempre o mesmo concerto para as mesmas pessoas. Perdeu a empolgação.

Veja – No ano passado, durante as comemorações dos 250 anos de nascimento de Mozart, o senhor causou polêmica ao afirmar que a obra dele não tem nada de inovador. Ainda pensa assim?
Lebrecht – Você não precisa ler meus artigos para chegar à conclusão de que Mozart nunca foi um grande inovador. O maestro austríaco Nikolaus Harnoncourt, especialista na obra de Mozart, já defendeu a tese de que sua música não traz grandes inovações em relação ao que foi feito por Haydn – este, sim, um grande gênio. O que mais me irrita é a mozartmania, que dá origem a caça-níqueis como as gravações para bebês ouvirem quando ainda estão na barriga da mãe. No ano passado, praticamente todas as gravadoras lançaram discos dedicados a Mozart. Como se a obra dele fosse tão poderosa a ponto de trazer o público de volta para a música erudita. Isso aconteceu? Claro que não. Se eu fizesse uma comparação entre os autores eruditos e a gastronomia, Mozart seria no máximo um McDonald's.

Veja – Algum maestro foi favorável ao seu artigo sobre Mozart?
Lebrecht – Publicamente, não. Mas muitos deles me diziam que estavam cansados de reger as mesmas obras de Mozart. "Norman, estou sofrendo de mozartite. Por favor, me dê um pouco de atonalismo."

Veja – Quais compositores clássicos mereceriam maior atenção do público atual?
Lebrecht – O ano de 2009 marcará o bicentenário da morte de Haydn. Quantas vezes foi possível apreciar as 104 sinfonias desse compositor, sem falar nas óperas que ele escreveu? Haydn criou o formato da sinfonia que anos mais tarde seria absorvido por Mozart. Ele não tem a mesma versatilidade de seu discípulo famoso, mas, por favor, vamos deixar Mozart de lado e ouvir mais Haydn. Eu digo o mesmo em relação a Mendelssohn, Schumann e Liszt. Eles deveriam estar bem mais presentes nas salas de concerto. São criaturas de uma era mais tardia, que empreenderam buscas musicais mais conscientes e significativas para o nosso tempo. Esses três compositores abordaram as grandes questões humanas em suas partituras. Mozart compunha por instinto, sem visar a nada muito mais elevado do que entreter e ganhar a vida.

Veja – A grande novidade da música erudita nos últimos tempos foi a Finlândia, país que se tornou exportador de grandes maestros. O que os finlandeses fizeram de certo?
Lebrecht – A Finlândia tem se tornado uma potência não apenas na regência. Eles estão tendo avanços na tecnologia também. Qual é a marca do seu aparelho celular? Pois o meu é de uma empresa da Finlândia. E sabe por que a Finlândia será uma potência? Porque as crianças aprendem a ler música e a tocar um instrumento musical na mesma época em que aprendem a ler e escrever. Em suma, são orientadas a desenvolver o cérebro – e isso ajuda em outras atividades.

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