Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 30, 2007

Simon, Jarbas, Peres, Gabeira e Torres: luta pela ética

Os mosqueteiros da ética

Eles são poucos. Mas é quase tudo com que os brasileiros podem contar no Congresso para que os interesses particulares não dominem totalmente a política


Otávio Cabral e Alexandre Oltramari

Montagem sobre fotos divulgação/Oscar Cabral/Roberto Barroso/Edvaldo Rodrigues/Jose Cruz-ABR e Ed Ferreira-AE
Da esquerda para a direita: Gabeira, Simon, Jarbas, Demostenes e Jefferson Peres

O caso Renangate só não é um desalento completo porque existem alguns poucos batalhadores da ética no Congresso Nacional. Na Câmara, a figura que sobressai sempre que aparece um escândalo é a do deputado Fernando Gabeira, do PV do Rio de Janeiro. No caso que envolve o senador Renan Calheiros, acusado de ter suas despesas pagas por um lobista de empreiteira, Gabeira cruzou os corredores do Congresso para dizer a Renan Calheiros que ele não tem mais condições de presidir a Casa. Renan, claro, não lhe deu ouvidos. No Senado, Pedro Simon, do PMDB gaúcho, e Jefferson Peres, do PDT do Amazonas, são referências constantes de um comportamento correto e íntegro, chama que se reacendeu na atual provação à qual o senador Calheiros submete seus pares e a instituição.

Outros dois senadores têm aparecido como sentinelas avançadas da sociedade brasileira no caso Renangate. Um deles é Jarbas Vasconcelos, do PMDB de Pernambuco, que na semana passada pediu a palavra durante sessão presidida pelo próprio Renan Calheiros, denunciou o clima de desconforto que tomava conta do plenário e explicou por que pediu o afastamento de Renan numa entrevista: "Para não nos causar o constrangimento que causa hoje presidindo a sessão". E completou: "O que não pode é o Senado ficar sangrando e, mais do que isso, fedendo". O outro é o incansável senador Demostenes Torres, do DEM de Goiás. No Conselho de, digamos assim, Ética do Senado, ele é uma das únicas vozes a exigir investigações sérias e denunciar as manobras para absolver sem apurar. Demostenes Torres entende o que muitos senadores fazem questão de não ver: o Senado está se desmoralizando numa velocidade avassaladora. A esperança que resta é que esse pequeno conselho de mosqueteiros da ética consiga derrotar as malandragens do grande Conselho de, digamos assim, Ética do Senado.

Na primeira reação à denúncia de que um lobista bancava suas despesas, Renan tentou jogar o assunto para o terreno pessoal, apresentando-se como vítima de invasão de privacidade. Diante da evidência de que suas relações com o lobista não eram assunto particular, a abordagem deu errado. Na estratégia seguinte, ele pressionou seus colegas com baixarias diversas e ameaças de dossiês. Do seu círculo mais próximo partiram boatos sobre a vida íntima e a honestidade pessoal de alguns senadores. Como ninguém se intimidou, a estratégia também não deu certo. Na semana passada, Renan encontrou mais uma alternativa – a chantagem política sobre o Palácio do Planalto. Até a sexta-feira passada, a nova estratégia vinha apresentando bons resultados. Depois de falar por quarenta minutos com Lula, Renan virou o jogo. Ganhou apoio explícito do presidente, reaglutinou os governistas pela sua absolvição e recuperou o controle sobre o Conselho de, tá bem, vá lá, Ética do Senado.

Ailton De Freitas/Ag. Globo
Quintanilha, presidente do Conselho de Ética: indiciado pela PF

A chantagem sobre o governo começou na terça-feira, quando a cúpula do DEM, o ex-PFL, tomou a posição mais lúcida entre todas as legendas do Senado: em nota, pediu que Renan deixasse o comando da Casa. O senador aproveitou o conteúdo da nota para dizer que o caso era uma disputa entre governo e oposição. Para a senadora Ideli Salvatti, líder do PT, Renan reclamou que Lula não o atendia havia cinco dias e exigiu que Sibá Machado, petista do Acre, fosse destituído da presidência do Conselho de, digamos assim, Ética. Em seguida, Renan brindou o Planalto com uma demonstração de seu poder: parou os trabalhos do Senado e não votou uma única matéria de interesse do governo. Alarmada, Ideli, obedecendo a ordens do Planalto, passou a forçar a renúncia de Sibá Machado. À noite, Lula encerrou seus cinco dias de silêncio e convidou Renan para uma conversa no dia seguinte. Ao presidente, Renan fez a catilinária de praxe. Disse que haveria a ameaça de crise de governabilidade e tudo não passaria de disputa antecipada sobre a sucessão de 2010. Parece que Lula acreditou na patacoada, ou tem outros temores sobre os saberes de Renan, pois orientou seus líderes a trabalhar pelo senador – e, com isso, tudo mudou.

Com a tropa petista ao seu lado, Renan colocou o Senado para funcionar, aprovando oito projetos num único dia, inclusive alguns de interesse vital do governo. Também voltou a ter controle sobre o Conselho de, digamos assim, Ética. Conseguiu afastar Sibá Machado da presidência. Convenceu o vice-presidente, senador Adelmir Santana (DEM-DF), a desobedecer a ordens de seu partido e protelar os trabalhos. Barrou a indicação do senador Renato Casagrande (PSB-ES) para relator do seu caso. Casagrande foi convidado para a relatoria, aceitou o convite e acabou desconvidado por pressão de Renan. Num telefonema do senador Romero Jucá, líder do governo e membro graduado da confraria de Renan, Casagrande ouviu que era preciso "sanear o processo" que tramita no conselho. O que significa "sanear o processo"? Qualquer medida que possa salvar o pescoço de Renan, missão que Casagrande não parece disposto a cumprir. Há duas medidas em gestação. A primeira é alegar que o conselho não tem competência para investigar senadores e enviar o caso ao Supremo Tribunal Federal, corte famosa por sua morosidade e célebre por jamais ter punido um único parlamentar. A outra é indicar o senador Inácio Arruda, do PCdoB do Ceará, para relator do caso. Arruda, esse comunista cujo coração pulsa impregnado da ambição de defender o proletariado, esse militante indignado com a dominação das elites espoliadoras sobre o operariado explorado, esse homem que só tem olhos para o triunfo da Justiça no mundo, já prometeu inocentar Renan.

Leonardo Wen/Folha Imagem
O presidente Lula e Renan Calheiros, em solenidade no Palácio na semana passada: com a tropa petista, o senador virou o jogo

A vitória final do senador veio com a eleição de um apaniguado para a presidência do Conselho de, digamos assim, Ética. O novo presidente é Leomar Quintanilha (PMDB-TO). Sua mera presença no órgão é um escárnio. Indiciado pela Polícia Federal, Quintanilha é investigado pelo Supremo Tribunal Federal sob a acusação de corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Desde 2002, ele é suspeito de ter recebido, por meio de dois prepostos, 283.000 reais de propina de um consórcio de empreiteiras liderado pela Mendes & Facchini. A polícia suspeita que o esquema funcionava assim: Quintanilha fazia emendas ao Orçamento destinando dinheiro às obras do consórcio da Mendes & Facchini e, em troca, embolsava as propinas. As obras eram superfaturadas, algumas vezes nem saíam do papel e quase sempre eram resultado de licitações fraudadas. Perguntado se sentia algum constrangimento em presidir um Conselho de Ética estando indiciado pela polícia e sob investigação judicial, Quintanilha foi claro: "Não devo nada. Por isso, não tenho nenhum constrangimento". Outros cinco membros do conselho respondem a processos no Supremo Tribunal Federal. Quatro estão na tropa de choque de Renan. Só um peemedebista do órgão não tem processo no STF. É Gilvam Borges, do Amapá. Mas, numa única frase, já apresentou seu pedigree: "Se for investigar todos os senadores a fundo e levá-los ao Conselho de Ética, não sobra um. Tem de fechar o Congresso por dois anos". Diante disso, conclui-se que o senador acha melhor não investigar ninguém para não superlotar o presídio.

Ed Ferreira/AE
O senador Casagrande: convite e desconvite


No escândalo que vem esboroando o que ainda resta de credibilidade ao Senado, Renan tem tido uma atuação esquizofrênica. Nos bastidores, age com tenacidade febril para escapar da cassação, escolhendo seus julgadores, aprovando e vetando nomes, traçando estratégias e mandando bilhetes manuscritos aos senadores com apelos de ajuda. Em público, exibe-se com um ar de magistrado. Dá entrevistas em que insiste que tem paciência, faz questão de que o processo corra normalmente e só quer o triunfo da verdade. "Já apresentei as provas de minha inocência ao Conselho", disse na segunda-feira. "O que importa é que eu não me intimidarei", disse na terça-feira. "O relevante é que a verdade apareça", disse na quarta-feira. A ironia da semana aconteceu quando Renan, pela primeira vez, levantou a voz contra o desempenho do Conselho de, digamos assim, Ética. Acusou o órgão de "fingir que está cumprindo seu papel". O conselho, todos sabem, não cumpre seu papel precisamente porque, nos bastidores, Renan faz tudo o que está ao seu alcance para que isso não aconteça. Haja esquizofrenia.

QUANDO O SUPLENTE É CONVENIENTE

Celso Junior/AE
Sibá Machado, que renunciou ao cargo: ex-coveiro


O circo montado no Conselho de Ética para absolver Renan Calheiros colocou em evidência uma categoria de parlamentares que costuma passar despercebida em Brasília: os suplentes de senador. Com pouca ou nenhuma atividade política, os suplentes estão vivendo seus quinze minutos de fama porque aceitaram bovinamente a missão de arquivar o processo contra o presidente do Senado. Não foram escolhidos por acaso. Os suplentes, ao contrário dos senadores titulares, assumiram seu mandato sem receber um único voto e, portanto, não têm contas a prestar à opinião pública nem temem a ira do eleitorado. Não foi propriamente difícil encontrar suplentes dispostos a encenar o papelão. Dos 81 senadores, onze são suplentes, o equivalente a 13% da atual legislatura. Quatro deles já subiram ao picadeiro do Conselho de Ética. O mais conhecido é Sibá Machado, do PT do Acre, que assumiu a cadeira da atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Ele renunciou à presidência do Conselho de Ética diante de pressões do PT e do PMDB para que enterrasse logo o processo contra o presidente do Senado. Mesmo Sibá, um ex-coveiro que até então tinha uma postura simpática a Renan, percebeu a palhaçada e tentou adotar uma postura mais independente. Foi posto para fora.

Na semana passada, enquanto o Conselho de Ética não achava um substituto para Sibá, quem assumiu sua cadeira foi o também suplente Adelmir Santana, do ex-PFL. Ele virou senador depois que o titular da vaga, Paulo Octávio, também do ex-PFL, renunciou ao cargo para se candidatar a vice-governador do Distrito Federal, no ano passado. Santana passou 24 horas na presidência do Conselho de Ética e cumpriu seu papel: não deu um único despacho. Sibá e Santana são exceções. Como regra, os suplentes são financiadores da campanha do titular ou parentes. Os suplentes preferidos, no entanto, são os parentes. Na atual legislatura, há pelo menos sete deles. Um é Antonio Carlos Júnior, filho do senador Antonio Carlos Magalhães, que já exerceu parte do mandato de senador quando o pai renunciou, em 2001. Outro suplente-parente é Adalgilsa Carvalho, que, além de eventual substituta do senador Mão Santa, do PMDB do Piauí, também é sua esposa. Entre os suplentes-financiadores, figura ainda Wellington Salgado, do PMDB de Minas Gerais, que ocupa a cadeira do ministro das Comunicações, Hélio Costa. Ele doou 686 000 reais à campanha de Costa ao Senado.

Jose Cruz/ABR
Adelmir Santana, suplente do suplente: nenhum despacho


De acordo com a legislação eleitoral, cada candidato ao Senado escolhe livremente seus dois suplentes. Caso o parlamentar eleito decida se licenciar, renuncie ao mandato ou seja cassado por seus pares, quem assume suas funções é o seu primeiro suplente. Não importa que o suplente não tenha recebido um único voto, nem que o eleitor não faça a menor idéia de quem se trata. A suplência serve apenas para preservar o interesse do titular, e não do eleitor. Um sistema que poderia servir de inspiração para corrigir essa distorção é o adotado nos Estados Unidos. Lá, cada estado tem dois senadores. Se um deles deixar o cargo temporariamente – para assumir um posto no governo, por exemplo –, o estado fica com um representante a menos, e o senador que arque com o ônus de explicar a presepada aos seus eleitores. Em caso de renúncia ou morte do titular, uma nova eleição é convocada em noventa dias. No Brasil, diante da conveniência de entronizar um aliado, parente ou financiador de campanha, ninguém parece preocupado com o assunto. Existem dois projetos de lei no Congresso que prevêem o fim da farra dos suplentes, mas ambos estão engavetados faz sete anos. Na reforma política em debate no Congresso, não há uma vírgula para acabar com a atual norma de suplência.

Otávio Cabral

Arquivo do blog