Gaudêncio Torquato
Sob a cúpula côncava do Senado, o senador Renan Calheiros se arma com pilhas de documentos, enredos e um pequeno exército chefiado pelo comandante da frente ética, de nome Sibá Machado, para levar a cabo a operação com o objetivo de salvaguardar o império da presidência da Casa e, de quebra, o próprio mandato, por suposta quebra de decoro parlamentar. Quanto mais o presidente do Senado procura comprovar rendimentos compatíveis com a pensão paga à ex-namorada, com quem teve uma filha, mais evidências de irregularidades aparecem. A blindagem em seu entorno, feita por aliados orientados para desmontar o acervo de provas, se apresentava como sórdida operação no meio da crise que afasta a sociedade da instituição política. O parecer dado pelo licenciado senador Epitácio Cafeteira, antes de ver provas documentais, é uma peça vergonhosa. Ainda bem que recuaram da idéia de inocentá-lo “a todo custo”. Fica, porém, a marca de arrumação corporativa. O que chama a atenção no “Renangate” não é a determinação de Calheiros em se manter, a ferro e fogo, no terceiro cargo na linha sucessória, logo depois do vice-presidente da República e do presidente da Câmara, mas o cabresto envergonhado a que alguns senadores se submetem, para desmoralização da Câmara Alta e indignação geral da Nação.
Por quê? A indagação corre o País. Por que razão um seleto grupo, que ocupa o espaço mais ambicionado da política, fecha os olhos para as graves denúncias que encurralam o senador das Alagoas e mancham a história da Casa que já acolheu perfis como Pinheiro Machado, Tavares Bastos, Joaquim Murtinho, Prudente de Moraes, Bernardino de Campos e Campos Sales? Porque não mais representa o escopo de excelência inerente à sua tradição, bastando anotar que, no século 19, ali se decidiram questões vitais como as relações internacionais do País; o Rio da Prata, eixo central no capítulo da segurança; a imigração; a abolição da escravatura; o comércio exterior e a industrialização, entre outras. Hoje, é pálida sombra do passado, não pela diminuição de sua importância, mas pela escassa bagagem intelectual e política de parcela de seus 81 membros. Mais de um terço dos senadores não obteve nenhum voto, ganhando o cargo por serem suplentes, que passam ao largo das urnas. Senador sem voto é um Jaguar sem gasolina, só impressiona pela aparência. Mas o Senado custa aos cofres da União R$ 2,7 bilhões por ano, ou seja, cada senador custa R$ 33,4 milhões. Como o senador defende os interesses do Estado, e não do povo (representado pelo deputado), ele não se sente obrigado a falar diretamente com a dona de casa, o trabalhador, o homem das ruas. Tem mandato de oito anos, podendo, no meio, candidatar-se duas vezes a prefeito e uma a governador, sem perder a vaga em caso de derrota.
Simulemos um debate sobre ética na política entre os senadores Sibá Machado, presidente do Conselho de Ética, o ex-relator do processo contra Renan, o cabeludo Wellington Salgado, e o senador Rui Barbosa. O mestre lhes diria: “Não há nem pode haver aliança entre a política e os meus interesses privados. A política é e será sempre a inimiga da minha prosperidade profissional.” Machado, suplente da ministra Marina Silva, poderia retrucar: “Ética é fidelidade aos amigos.” E Salgado arremataria: “Aos amigos, pão; aos inimigos, pau.” O velho Rui, no troco, lembraria trecho do discurso de 26/12/1901, que bem poderia servir de conselho a Renan: “Vespasiano dizia que, para um imperador, decência é morrer de pé, decência é cumprir bem o seu papel.” O dito daria chance para Calheiros, em aparte, brincar: “Posso até morrer de pé, mas atirando como bom alagoano.”
Que falta de compostura! Assume o Ministério do Futuro a pessoa que afirmou ser o primeiro governo Lula o mais corrupto da História. Na época, o professor Mangabeira Unger devia ter motivos para fazer a denúncia. Ter-se-ia dado conta dos escândalos do Brasil nos últimos 40 anos? Vejam: 9 no governo Geisel, 10 no governo Figueiredo, 6 no governo Sarney, 19 no curto ciclo Collor, 31 durante a administração de Itamar, 44 no período FHC e 104 desde 2003, quando Lula assumiu o governo. Por que Unger quis entrar no governo que execrava? Porque vê nele grandes oportunidades. Porque o vice-presidente da República, José Alencar, tem um projeto político. E porque Lula é “magnânimo”. Denúncia, no Brasil, tem pernas curtas. E a palavra vale meia pataca.
A descompostura se alastra como peste. Assim se explica a criação de mais 626 novos cargos de confiança no Poder Executivo, ao custo de R$ 23,3 milhões. Eles se juntarão aos 21.563 convidados antigos, que, por sua vez, comemoram um aumento salarial de até 139,7%, proposto pelo próprio governo. Ora, a grana é abundante. A Receita Federal arrecadou R$ 31,58 bilhões, valor 10,83% maior que o de outros meses de junho. Deitando e rolando na cama confortável, Lula entoa o bordão: “A situação econômica do País é a melhor desde que a República foi proclamada.” Não dá bola para a censura que o TCU fez às contas do governo. Afinal, aplicar sem fiscalização R$ 12,5 bilhões tem sido rotina dos governantes desde a colônia. Mas há quem não saiba com quantos paus se faz a canoa da corrupção.
A falta de vergonha, agora, é na Câmara. Fruta madura, a reforma política estava prestes a ser colhida na árvore reformista. Mas as facas afiadas de grupos cortam em pedaços os galhos da reforma, desfigurando o formato mais adequado para a moralização de padrões. O que sobra é um monstrengo: lista aberta e lista fechada, financiamento público e financiamento privado, juntos, ou seja, a ante-sala da depravação. E assim la nave và... Sobre as águas da mesmice. E da impunidade, eis que, em 40 anos, nenhum político ou governante nos 137 processos que deram entrada no Supremo Tribunal Federal foi punido. E ainda dizem que nossa democracia é de primeira.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br