O Congresso Nacional foi à falência
Para quem ainda duvida, vai aqui breve inventário do estado de coisas entre deputados e senadores No 185º ano da independência do Brasil, 183º da instalação da Câmara dos Deputados, 183º da instalação do Senado, 118º da República e 22º da restauração democrática, eis como, na semana passada, se apresentava o Congresso Nacional: • o presidente do Senado desintegrava-se num redemoinho alimentado pelo sopro cruzado de lobista de empreiteira, pugnaz senhora conhecida como "gestante", papelório suspeito, bois mais inverossímeis do que o Minotauro e bilhetes lançados ao léu como mensagens de náufrago; • a Câmara dos Deputados, depois de fazer a viagem de circunavegação em torno de alternativas para o sistema de eleição de seus membros, com escalas na lista partidária fechada e na lista partidária flexível, com o cuidado de passar ao largo, com medo dos escolhos, do voto distrital puro e do voto distrital misto, voltava ao ponto de partida, consagrando como o melhor o sistema atual, em que se vota num candidato mas elege-se outro, empenham-se amazônicos dinheiros nas campanhas, não se faz campanha na TV porque nela não cabem todos os milhares de candidatos, e ao comum dos eleitores não se oferece saída senão votar às tontas e no dia seguinte não lembrar em quem votou; • o Conselho de Ética do Senado insistia na trama cujo desfecho ideal seria fingir que julga o presidente da Casa e logo absolvê-lo, cujo plano B é arrumar um jeito de mandar o processo para as calendas do Judiciário, cujo plano C é tanto protelar e refugar e remanchar que o assunto venha a ser esquecido, e cuja direção a evitar a todo custo é proceder a um julgamento honesto, com exame de documentos, oitiva de testemunhas e julgadores isentos; • na Câmara, o deputado Mário de Oliveira (PSC-MG) era acusado de tentar matar o deputado Carlos Willian (PTC-MG), ambos piedosos pastores da mesma denominação evangélica; • o senador Joaquim Roriz (PMDB-DF), flagrado numa conversa telefônica em que combina com o interlocutor o melhor lugar para a entrega de 2,2 milhões de reais, explicava que pediu emprestados 300.000 reais para pagar um boi, mas – que podia ele fazer? – o amigo só tinha 2,2 milhões para emprestar. A esses fatores conjunturais juntam-se outros, mais permanentes, como: • desapareceram do Congresso lideranças e partidos capazes de encaminhar as discussões, construir maiorias, conferir coerência e ordem aos trabalhos. Em face do ambiente caótico e da algaravia paralisante, começa a configurar-se como tendência a opção dos congressistas por abrir mão de suas responsabilidades e empurrar as questões para os plebiscitos. Foi assim quando não se conseguiu chegar a uma conclusão sobre a proibição das armas. E era para o mesmo rumo que se encaminhava, na semana passada, depois da derrota dos projetos sobre o sistema de eleição dos deputados. (Opinião deste autor: o povo tem mais que fazer do que esquentar a cabeça com voto distrital, voto proporcional, distrital misto, lista fechada); • o Senado apresenta-se corroído pelo caruncho do "suplente". O "suplente" é um fantasma concebido para o eleitor não se dar conta de que votou nele. Obtém o mandato não com votos, mas, freqüentemente, pelo instituto comercial da venda e compra: financia a campanha do cabeça de chapa e obtém em troca o exercício do mandato quando o titular se ausenta. Uma dúzia de suplentes encontra-se hoje no exercício do cargo no Senado. Alguns deles estão na linha de frente na laboriosa tentativa de fazer evaporar o caso Renan Calheiros; • continua a ter trânsito franco no Congresso a figura dos malabaristas doutrinários, capazes de amanhecer num partido e anoitecer em outro. O senador escolhido na semana passada para presidir o Conselho de Ética, Leomar Quintanilha (PMDB-TO), é um campeão nesse quesito. Acrobata de tirar o fôlego, iniciou carreira na Arena, o partido da ditadura militar, para a uma certa altura descobrir-se comunista e ingressar no PCdoB. Isso depois de passar pelo PDC, pelo PFL e pelo PMDB e antes de retornar ao PMDB; • o Congresso, graças ao entendimento amplo que empresta ao instituto da imunidade parlamentar, continua o melhor homizio disponível para quem enfrenta problemas com a lei. Para citar um caso, porventura o mais eloqüente, o deputado Paulo Maluf (PP-SP) não pode pisar nos Estados Unidos, onde pesa ordem de prisão contra sua pessoa. Arrisca-se, se pisar em outros países, a ser detido pela Interpol. No Brasil, graças a uma legislação complacente e a uma Justiça generosa em protelações, movimenta-se à vontade. Ainda mais que, mesmo condenado, teria a protegê-lo o muro sagrado da imunidade parlamentar. Diante do exposto, o autor deste breve inventário, apenas uma pálida seleta dos argumentos que se poderiam invocar no mesmo sentido, cumpre o doloroso dever de informar que o Congresso Nacional faliu. |