Gaudêncio Torquato
O que é, o que é: quanto mais se bate, mais cresce? Massa de pão. Mas, no Brasil, também pode ser medida provisória (MP), estatuto com força de lei, estabelecido pelo artigo 62 da Constituição de 88, que confere ao presidente da República o poder de adotá-lo em casos de relevância e urgência. Entre o início do governo Sarney, em 1985, e o final do segundo mandato de Fernando Henrique, em 2002, o País ganhou 5.293 MPs. Ao longo do primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio editou em média uma MP por semana. Sob a letra constitucional, a conta indicaria ciclos conturbados, que exigiriam intervenções do Executivo para enfrentar crises financeiras, ataques especulativos à moeda ou catástrofes naturais, como secas e enchentes. Não foi isso o que ocorreu. Há tempos o País navega em calmaria. Debite-se, então, o exagero à banalização de instrumentos excepcionais, frutos de uma cultura que desmoraliza normas.
A constatação é de arrepiar: desde 2003, as MPs trancam seis de cada dez sessões da Câmara. O instrumento provisório tornou-se permanente. Quanto mais é combatido, mais o Executivo dele se vale. O PT, que no passado trombeteava contra o abuso das medidas, agora entende que preservam a agenda do governo. Os partidos acomodam-se. Reclamações caem no vazio. O chefe do Executivo conta com duas armas para aprovar sua agenda legislativa: projeto de lei ordinária (PLO) e MP. Politicamente fraco, costuma valer-se desta última; quando possui ampla maioria, a arma é o PLO. Ora, Lula é o mais forte presidente da contemporaneidade. Mesmo com densa base de apoios, recorre constantemente ao poder extraordinário, estiolando a função legislativa do Parlamento e propiciando a conclusão de que o sistema de checks and balances, freios e contrapesos, necessário ao equilíbrio entre os Poderes, ameaça ruir. Dessa forma, o presidente rompe o paradigma que dita o uso de poderes unilaterais.
O Legislativo torna-se refém do Poder Executivo e este, detendo as prerrogativas de propor medidas e leis, controlar a execução do orçamento e vetar projetos, além de principal legislador, transforma-se em artífice de um parlamentarismo às avessas. Essa modalidade de parlamentarismo invertido, a propósito, foi aplicada, por aqui, em 1847, quando Pedro II, inspirando-se no modelo inglês, o adaptou à sua conveniência. No parlamentarismo, o primeiro-ministro, normalmente indicado pelo partido majoritário, comanda o Gabinete e passa a exercer o governo. O imperador, ao contrário, fazia-se de Poder Moderador, escolhendo o presidente do Conselho de Ministros, e este indicava os membros do Ministério. Na discordância, demitia o Ministério e dissolvia a Câmara. Hoje, temos uma versão caricata do passado. O Executivo aplica o cipoal legislativo que constrói ou encomenda, em contraste com o presidencialismo de democracias consolidadas, como a norte-americana, onde o presidente não pode propor leis nem controla a elaboração e a execução do orçamento. Aqui, até a eleição dos chefes das Casas Legislativas precisa ser endossada pelo presidente da República.
É bem verdade que ao Legislativo cabe parcela de culpa por sua fragilidade. Há várias razões para tanto, como a lenta tramitação de projetos de lei. Alguns estão há décadas aguardando vez para entrar na pauta de votação. E por que isso ocorre? Vejamos. A cultura congressual trabalha com o entendimento de que fazer leis é a função que dá mais projeção ao representante. Desse modo, o parlamentar se esforça para multiplicar a quantidade de projetos de sua autoria, mesmo sabendo que poucos chegarão à reta final. Muitos tratam da mesma matéria e, por isso, são anexados ao tronco mais antigo. Só na área de informática, por exemplo, há mais de cem projetos de lei em tramitação. Os tonéis legislativos locupletam-se com idéias em fermentação. Ademais, a sociedade multiplica os núcleos de organização e pressão, gerando milhares de entidades que passam a patrocinar a eleição de seus representantes. Ao atravessarem o corredor legislativo, os projetos esbarram na lupa dos grupos corporativos. O jogo é, então, interrompido. Deputados sentam-se sobre o projeto e, se este contraria interesses de patrocinadores, permanece soterrado. É uma festa quando idéias boas são aprovadas, como esta que concede a nacionalidade a filhos de brasileiros nascidos no exterior, a PEC 272, aprovada há sete anos no Senado e só agora votada na Câmara. Há décadas que se defende a reforma política como a chave para moralizar os padrões políticos. Ingressa, agora, na agenda, com seus eixos tortos. Ao final, veremos um frankenstein de galochas. O melhor “patrimônio” da representação política não resiste às conveniências individuais ou grupais.
O controle do Executivo, função essencial do Legislativo, fica restrito à minoria parlamentar, a qual, por sua vez, se esfacela diante do rolo compressor da máquina governista. Os mecanismos de investigação, como CPIs, perdem força em função da banalização e do espalhafato que transmitem. Surfando na onda da esculhambação legislativa, o Planalto dita os rumos. Sabe que o Congresso é um paredão de obstáculos que faz sua vontade. E manda ver nas MPs de “urgência e pertinência”, como as mais recentes, que indenizam portadores de hanseníase (causa sensível), aumentam de 18 para 24 anos a idade-limite para a participação de jovens em programas de aprendizagem, regulam o trabalho aos domingos e legalizam as centrais sindicais. Sob a inação do Legislativo, o Executivo avança. Das proposições votadas pela Câmara dos Deputados de fevereiro até o final de maio, mais de 85% se originaram no Executivo, que promete usar o poder de fogo para aprovar nas próximas semanas eixos das reformas sindical e trabalhista. Pensava-se que esse espaço pertencia ao Parlamento. O governo fez acordo com as centrais sindicais para atirar com a arma das medidas provisórias.
Dá para entender, assim, os 2% de credibilidade que o Congresso Nacional exibe em pesquisas de opinião pública.
Um índice “pra lamentar”.