Celso Ming
Ainda não foi martelado o último prego no caixão da Rodada Doha, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), porque ainda há uma débil probabilidade de reversão do impasse.
Mas não se pode ter mais ilusões. Acabou o baile. E, se é assim, está mais do que na hora de produzir um plano B que vá na direção para a qual os demais países estão indo: na de negociações bilaterais de comércio. Até agora, essa era uma hipótese descartada pelo governo Lula. O Itamaraty investiu seu cacife nas negociações multilaterais, como a que acaba de fracassar, porque imaginava que só assim poderia mobilizar a solidariedade dos demais emergentes na luta contra o protecionismo dos países ricos. Agora, viu-se em Postdam, a Índia mais atrapalhou do que ajudou.
Em parte, a falta desse plano B reflete a concepção carregada de preconceitos ideológicos sobre a natureza do comércio exterior. O miolo do PT e o das esquerdas brasileiras sempre entenderam que liberação do comércio exterior é jogo neoliberal comandado pelos países centrais, com o objetivo de exercer domínio neocolonialista por outros meios.
Assim, a OMC nunca deixou de ser vista nesses ambientes como instituição internacional criada a partir do mesmo DNA que gerou o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
Por isso, as esquerdas sempre defenderam uma estratégia de desenvolvimento econômico centrada no avanço do mercado interno, o que exige proteção da indústria, na qual o comércio exterior só exerceria função complementar.
Essa foi a principal razão pela qual o governo Lula trabalhou para congelar as negociações da Alca; pouco se empenhou em obter avanços nas negociações do Mercosul com a União Européia; simplesmente ignorou acordos bilaterais com países que detêm grandes mercados consumidores; e deu prioridade a negociar acordos com países de fluxo comercial irrelevante.
Mas as coisas mudaram. Apareceu a China e sua fome por matérias-primas. Em apenas cinco anos as exportações brasileiras saltaram dos US$ 60 bilhões para prováveis US$ 160 bilhões neste ano. E o câmbio pressiona as indústrias no mercado externo e também no interno... Enfim, passou a ser preciso abrir mercados lá fora para não matar a indústria aqui dentro, e isso se faz por meio de negociações comerciais com países cujos mercados têm densidade comercial, acordos cuja falta agora está pesando.
O principal obstáculo para o avanço de acordos bilaterais é o Mercosul, onde nada funciona. Na condição de união aduaneira prematura, o bloco exige que seus membros tenham uma política comercial unificada. Isso implica que, para qualquer negociação comercial, o Brasil tem de arrastar Argentina, Uruguai, Paraguai e, agora, a Venezuela. São países cujos interesses de comércio exterior raramente coincidem. O Brasil é visto dentro do bloco como potência subimperialista cuja indústria tem natureza predatória. Quem tem dúvidas sobre isso deveria examinar o tipo e o tamanho das salvaguardas impostas pelo governo argentino às exportações brasileiras.
Do ponto de vista do interesse público brasileiro, o melhor caminho parece ser o de rebaixar o Mercosul à condição de área de livre-comércio (ainda em formação), para deixar cada um dos seus membros com liberdade para negociar acordos bilaterais de comércio com quem lhes aprouver.
Falha nossa
Doha não é capital do Kuwait, como saiu na coluna de sexta-feira. É capital do Catar.