Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 30, 2007

Ratatouille: o rato que queria ser chef

Cinema
Sobre ratos e homens

Um roedor que quer ser chef dá o mote a Ratatouille, um dos desenhos mais brilhantes e ambiciosos já feitos pela Pixar


Isabela Boscov

Divulgação

O sinistro chef Skinner surpreende Remy e seu aliado, o lavador de pratos Linguini: a vida não é simples para ninguém

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Trailer do filme

Trata-se de um dos mitos fundadores da civilização: um jovem é separado dos seus e tem não apenas de enfrentar o mundo sozinho, entre estranhos, como também se provar à altura de uma tarefa gigantesca, da qual ninguém o julga capaz. Que o jovem aqui seja um rato – do detestado gênero Rattus mesmo, e não um menos ofensivo camundongo – só acrescenta à eloqüência de Ratatouille (Estados Unidos, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país. Remy, o rato em questão, é o proverbial estranho no ninho. Em vez de comer qualquer coisa que encontre pela frente, como manda o instinto da espécie, ele persegue os melhores ingredientes e sonha com combinações de sabores. E, por ser tão diferente, vai provocar uma crise (a qual envolve uma velha, uma espingarda e uma escalada de ação) e levar seu clã ao êxodo. Remy, porém, se desencontra da família – e cai na cozinha do restaurante que foi de seu ídolo, o falecido Auguste Gusteau. Tão perto do paraíso, e tão longe dele: ratos, ainda que de paladar apurado e talento gastronômico incomum como Remy (que também lava as mãos antes de tocar na comida), não são bem-vindos em cozinhas, o que obrigará o herói a uma existência clandestina, sob o chapéu do recém-contratado lavador de pratos. Linguini, o rapaz, precisa fingir que sabe cozinhar; Remy ama tanto ser chef que está pronto a exercer a profissão sem levar os louros por suas criações; e, depois de um aprendizado algo acidentado, os dois passam a funcionar como um só. Essa dupla impostura, porém, terá de resistir às más intenções do sous-chef que herdou o restaurante, o sinistro Skinner (assim batizado em referência ao cientista Burrhus Frederic Skinner, que utilizava experimentos com ratos para demonstrar suas teorias behavioristas), e à perfídia do crítico gastronômico Anton Ego, que perdeu o prazer à mesa e só o encontra arrasando os estabelecimentos que freqüenta.

Ratatouille é o primeiro desenho feito pela Pixar desde sua compra pela Disney e demonstra por que a produtora valeu o negócio de astronômicos 7,4 bilhões de dólares. A despeito das qualidades dos outros estúdios que atuam na área, nenhum deles tem um compromisso tão firme e profundo com a originalidade quanto a Pixar – num tempo em que isso é visto como um risco desnecessário, quando não desaconselhável. Um levantamento publicado há pouco pelo jornal The New York Times revelou que, nos últimos cinco anos, apenas 20% dos filmes que superaram os 200 milhões de dólares na bilheteria americana partiram de uma premissa integralmente original. Os 80% restantes constituem seqüências ou adaptações, contra não mais do que 50% na década passada. Brigar por um projeto novo, portanto, requer cada vez mais coragem financeira e criativa. Foi por causa da insistência nesse tipo de valentia que, antes de virarem uma única corporação, as duas empresas haviam rompido de forma acrimoniosa sua parceria de distribuição – porque a Disney queria continuações e, à exceção de Toy Story 2, a Pixar se recusava a fazê-las. O panorama financeiro não ficou mais fácil desde então, já que os desenhos da Pixar não fazem mais dinheiro, na média, do que os lançamentos da concorrência. Mas também não fazem menos, embora não apelem para material já testado e aprovado. Em outras palavras: ter em mãos o maior celeiro criativo da animação mundial significa não apenas lucro, como também é garantia de que se estará sempre na dianteira, ditando tendências em vez de segui-las – um negócio excelente para a Disney, e mais ainda para o espectador.

Há de se ter coragem, sem dúvida, para solicitar que a platéia vença sua aversão aos ratos a ponto de torcer para que um deles assuma o comando de uma cozinha parisiense. Ratatouille supera esse desafio com um roteiro impecável e com um punhado de decisões muito sensatas. Remy, por exemplo, fala. Mas só com seus semelhantes. Em seu trato com seres humanos, ele se exprime com uma gama épica, do ponto de vista da animação, de gestos e expressões – o que o coloca sempre no centro emocional, por assim dizer, de cada cena. Ele anda sobre as duas patas traseiras, para que as dianteiras, com as quais lida na cozinha, atendam aos padrões mínimos de higiene. Mas aí termina sua "humanização" – e seus parentes, que a certa altura voltam à história, permanecem roedores genuínos, sujinhos e sem modos, até o final.

É quase desnecessário mencionar a qualidade da animação e da produção (que envolveu estágios em cozinhas famosas, para os animadores, e milhares de fotos de Paris a ser usadas como referência) ou o ponto sempre certo do humor, já que essas são marcas registradas até das criações não particularmente inspiradas da Pixar, como Carros. Acima de tudo, o que destaca Ratatouille do restante da produção de desenhos animados é a sua ambição. A jornada de Remy não é um mero passeio. É uma odisséia, no sentido estrito da palavra – uma odisséia que implicará encontrar consensos e meios-termos e até, numa cena brilhante, devolver a Anton Ego o prazer perdido de pôr uma garfada à boca. Ratos se esgueiram e roubam enquanto quem cozinha doa, ponderou o diretor Brad Bird (também de Os Incríveis). Um rato que se doa há de ter uma outra questão de identidade para resolver, e os seres humanos que decidam se aproximar dele terão também de vencer um ou outro preconceito. A vida em Ratatouille, enfim, está mais próxima do mundo complicado dos desenhos do japonês Hayao Miyazaki, de A Viagem de Chihiro, do que do universo controlado da Disney. Ela não é simples para ninguém – e por isso mesmo é muito mais interessante e saborosa.

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