Crase escondida
O líder radical tornou-se uma personalidade ambígua, com um discurso ambivalente |
Aos poucos, Lula e o PT se caracterizaram como um movimento sectário, que se opunha a todos os governos e a todas as propostas, mesmo aquelas que trariam indiscutíveis benefícios para a nação, tais como a criação do Fundeb e a Lei de Responsabilidade Fiscal. A imagem que Lula passava para a opinião pública era de um líder raivoso e sectário, capaz de apoiar todo e qualquer ato de contestação do poder constituído. Lembro-me de uma declaração sua a respeito da greve da Polícia Militar da Bahia, respaldando os policiais amotinados em flagrante violação da lei e da autoridade do governador que, embora legitimamente eleito, não era aliado do PT.
Tudo isso fez com que a perspectiva da eleição de Lula para a Presidência da República, em 2002, assustasse as classes conservadoras e particularmente o empresariado nacional e internacional. Embora Lula, àquela altura, procurasse atenuar sua imagem de líder radical, nem todos acreditaram nisso, do que resultou a grave crise econômica que abalou a economia brasileira naquele ano. Eleito e empossado, Lula rejeitou o apoio do PMDB (ao contrário de agora) e armou um esquema para manter-se no poder por 20 anos, conforme palavras ditas naquela época por José Dirceu, então chefe da Casa Civil da Presidência. Esse esquema consistia em aparelhar a máquina do Estado e comprar com dinheiro vivo o voto dos deputados da base aliada. Quando o esquema furou e o escândalo eclodiu, Lula, que já vinha mudando de figura, revelou então uma nova personalidade: o líder radical, que já tinha se transformado no Lulinha paz e amor, tornou-se uma personalidade ambígua, com um discurso igualmente ambivalente e difuso.
Não pretendo realizar aqui uma radiografia psicológica da Lula, mas não há dúvida que, ao se tornar presidente, incorporou um outro personagem, que possivelmente já existia nele. Esse personagem, que mistura ambição de poder e megalomania, sofreu uma situação inesperada e difícil, durante a crise de 2005, quando a sucessão de escândalos comprometia, uma a uma, as figuras mais importante do governo e do estado-maior petista, todos amigos seus, companheiros de primeira hora que o ajudaram a fundar o PT e juntos seguiram até a conquista da Presidência da República. Posta a nu a verdadeira natureza da organização que prometera moralizar a política brasileira, Lula sentiu o chão fugir-lhe sob os pés. Mas tinha um argumento a seu favor: se os companheiros denunciados o envolvessem no escândalo, seria a desgraça de todos sem apelação. Assim, de Dirceu a Genoino, de Delúbio a Silvinho, todos juraram que Lula não sabia de nada. E entregaram o pescoço à guilhotina. (que era cega, aliás).
Lula salvou-se mas não saiu o mesmo do episódio. Desde então seu discurso foi se tornando cada vez mais contraditório e ambíguo. Sim, porque ele tinha que, a um só tempo, condenar as falcatruas e desculpar os falcatrueiros, aceitar a evidência dos fatos e sem deixar levantar suspeitas. Ou seja, assobiar e tocar flauta ao mesmo tempo.
É verdade que ele nem sempre lança mão do discurso caótico. Se a situação é tranqüila, sua fala é quase normal mas, se tem que responder a uma pergunta relativa à agressão que seu amigo Chávez fez ao Congresso brasileiro, a coisa se complica, já que não pode apoiá-lo nem deseja hostilizá-lo. Mas o discurso de Lula complicou mesmo foi quando a Polícia Federal descobriu o envolvimento de seu irmão Vavá com a máfia dos caça-níqueis. Lula disse então: "Sou capaz de duvidar que meu irmão tenha algum problema". Ou seja, não é capaz de garantir que não tenha e duvidar que tenha requer capacidade. Assim ele nem garante nem duvida, porque de fato sabia, como os jornais revelaram depois, que o irmão tinha "algum problema". Este é Lula de hoje, que não é contra nem a favor, muito pelo contrário. E me vem à mente um de meus aforismos: frase torcida, crase escondida...