Paulo Renato Souza
A diferença essencial entre uma sociedade moderna e desenvolvida e as que ainda buscam atingir esse nível não é a quantidade nem a qualidade de suas leis, mas o seu cumprimento. Em nosso país grassa a impunidade, especialmente para os integrantes das elites sociais, econômicas ou políticas. Ela é especialmente significativa em relação aos crimes contra o patrimônio público, que não se reduzirão enquanto ela persistir.
Nos últimos três anos, a avalanche de denúncias, vazamentos de informações e investigações e evidências de fraudes de diversos tipos, envolvendo o desvio de recursos públicos por parte de autoridades, atingiu um volume sem precedentes na História do Brasil em qualquer época, imperial, republicana, democrática ou ditatorial. Desde as primeiras denúncias de irregularidades praticadas no governo Lula - com o chamado escândalo Waldomiro Diniz, que veio a público em fevereiro de 2004 - esses fatos se sucederam em velocidade e volume crescentes, atingindo membros do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. É um fenômeno que transcende absolutamente todas as fronteiras partidárias. Até agora a única instituição de âmbito nacional que não foi objeto de denúncias baseadas em evidências foi o Supremo Tribunal Federal (STF).
Dois fatos têm chamado a atenção nesses episódios recentes: a absoluta desfaçatez e falta de pudor com que muitas autoridades agem ao cometer delitos graves e a enorme letargia que passou a dominar a sociedade brasileira, como se tudo isso fosse normal e corriqueiro na vida pública de nosso país. Em passado não muito longínquo, por fatos muitíssimo menos graves, reagimos de forma vigorosa e nossas instituições democráticas funcionaram. Um presidente foi cassado pelo Congresso Nacional e deputados e senadores foram submetidos a processos, julgados e também, alguns deles, cassados por seus pares, em face de enorme pressão social. Devemos registrar, contudo, que nenhum deles foi punido criminalmente.
É bem verdade que as hostes dos indignados e de vozes ativas em favor da ética na vida pública sofreram importantes defecções com a neutralização completa para esse campo dos militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) e de amplos segmentos dos chamados “movimentos sociais” e entidades da sociedade civil. Com a ascensão do PT ao governo, uma parcela de seus quadros aderiu com grande apetite às práticas de corrupção na vida pública, como mecanismo de financiamento político ou como método de enriquecimento pessoal. Os demais estão claramente constrangidos pelas manifestações de seu líder maior, o presidente Lula, e de algumas de suas lideranças intelectuais, ao sustentarem que essas práticas sempre teriam sido normais na vida pública de nosso país. Isso justificaria, em nome do projeto político e social do partido, os desmandos a que assistimos. Esse mesmo constrangimento atinge a grande parte dos movimentos sociais que de longa data vêm atuando em sintonia com o PT.
As vozes que se elevam, reafirmando a necessidade do primado da ética na vida pública, apesar de desfalcadas, começam a se arregimentar novamente, buscando alternativas. Alguns de nossos principais meios de comunicação começam a destacar a importância das denúncias, mas também sua insuficiência. O Estado, em sua página editorial, tem reiteradas vezes manifestado essa posição. A revista Veja, em sua seção Carta ao Leitor da semana retrasada, concluía: “Para que as coisas realmente melhorem no Brasil, é preciso que às operações policiais se sigam ações judiciais e de promotoria feitas com igual ímpeto e obstinação de maneira que se possam prender menos suspeitos e condenar mais culpados.” No último domingo a manchete principal do jornal O Globo era: Em 40 anos, nenhuma ação criminal no STF deu punição.
Diversas propostas começam a ser aventadas para enfrentar o problema. Algumas destacam a reforma política como passo indispensável nessa direção. Sem dúvida, ela é importante e urgente em nosso país. Entretanto, é ilusão pensar que a reforma política solucionará o problema da corrupção.
Outras vozes se concentram no que me parece o ponto central do problema a ser enfrentado: a impunidade. A corrupção no Brasil não diminuirá enquanto não houver o indiciamento dos réus, o processo legal, o julgamento e a eventual punição. Essa seqüência de eventos republicanos e democráticos simplesmente não ocorre na imensa maioria dos casos de corrupção na vida pública brasileira. Quando acontecem, os processos são tão longos que seu efeito didático e de demonstração se perde no tempo.
Parece ganhar corpo na sociedade a proposta de acabar com o foro privilegiado para determinadas autoridades como o caminho para que essa seqüência ocorra. Em minha opinião, a supressão do foro privilegiado terá conseqüências exatamente opostas às desejadas. Acaso não sabemos sobejamente o que ocorre em muitos casos nas varas de primeira instância? Acaso não são conhecidas as técnicas protelatórias proporcionadas por nosso Código de Processo Penal? Acaso não temos em liberdade assassinos confessos já condenados em primeira instância?
Definitivamente, a solução não está na eliminação do foro privilegiado. Não a temos ainda. Mas sabemos o que é preciso: um processo rápido, bem instruído e com conseqüências concretas de absolvição ou de punição e cadeia.
Paulo Renato Souza, deputado federal por São Paulo, foi ministro da Educação no governo FHC, reitor da Unicamp e secretário de Educação no governo Montoro. E-mail: dep.paulorenatosouza@camara.gov.br