reduziu o eleitorado de um milhão para 100 mil, ao proibir o voto do
analfabeto.
A Lei do Ventre Livre foi votada após anos de brigas: deputado teve
que ser apanhado em casa, e houve cenas de pugilato. O manifesto
republicano de 1870 não defendeu o fim da escravidão.
O intelectual José de Alencar dizia que a lei era contra os
interesses nacionais.
Mudar, o Brasil muda. Mas lentamente. Sua resistência às mudanças
parece atávica para quem lê o passado com olhos de hoje. Iniciei
curtas férias recentes querendo fugir da conjuntura. Por isso me
abriguei no Segundo Reinado, no livro "D. Pedro II", de José Murilo
de Carvalho.
Lá esbarrei em certos defeitos presentes.
O Imperador pediu ao então Visconde de São Vicente que lhe preparasse
um projeto para a libertação dos escravos ainda não nascidos, e ele
fez cinco versões que foram levadas ao Conselho de Ministros em 1866.
O presidente do Conselho, o Marquês de Olinda, ficou contra a
discussão do tema.
O assunto sumiu de pauta, alguns atacavam a idéia diretamente, nenhum
partido a defendia. Mais explícito, José de Alencar tornou públicas
suas divergências em cartas abertas ao imperador.
"O monarca, segundo o autor de Iracema, queria agradar aos
filantropos europeus à custa dos interesses nacionais", registra o
livro. O romancista dizia que a escravidão era um fenômeno histórico
e que não podia ser resolvida "a golpes de lei". Na visão dele, a
escravidão sempre havia cumprido um papel "civilizador" e, no Brasil,
era ainda "indispensável".
O Visconde de Rio Branco a defendeu na Câmara, depois do fracasso de
São Vicente em conseguir apoio à proposta. Em 1867, o ministério
progressista decidiu incluir o tema na "Fala do Trono", um comunicado
ao país feito na abertura dos trabalhos legislativos.
"Houve novo escândalo", conta José Murilo. Nos anos seguintes, não
foi mais incluído.
Em 1871, o assunto dominou toda a pauta do Congresso e, em setembro,
foi aprovado. "Os deputados tinham que ser acompanhados de perto.
João Alfredo, ministro do Império e futuro autor da Lei Áurea,
pronunciou 21 discursos nas duas casas do Parlamento.
Em algumas ocasiões, o debate degenerou em pugilato", diz o livro.
Resistiam à Lei do Ventre Livre as províncias do Rio de Janeiro, de
São Paulo, de Minas Gerais e do Espírito Santo, que tinham 57% dos
1,5 milhão de escravos que existiam. Os líderes políticos dessas
províncias tinham muitas divergências entre si, mas a superaram
contra o "inimigo" comum.
Foi criado o Clube da Lavoura para evitar o fim do regime
escravocrata. Segundo o historiador, uniramse conservadores,
dissidentes, liberais, republicanos.
O argumento poderoso que os unia? Diziam que a idéia era de
inspiração externa. Velho vício brasileiro: um bom sofisma para
evitar a mudança.
O jornal "A República" dizia que o projeto tinha sido elaborado "nas
trevas do Palácio", à revelia da Nação.
Um projeto despótico, afirmava.
"A se dar crédito às posições dos críticos, inclusive republicanos, o
abolicionismo era o despotismo, o escravismo era a democracia",
conclui José Murilo.
A contradição dos republicanos tinha um motivo: havia muitos donos de
escravos, entre eles, inclusive, o líder Campos Salles, que tinha
vasta escravaria nas suas terras em Campinas.
Na Lei do Sexagenário, outra batalha. O projeto foi descaracterizado
no Congresso.
Os opositores queriam cinco anos a mais, além dos 60, em que o
escravo trabalharia para indenizar seus donos. Aliás, a idéia da
indenização foi amplamente defendida, por várias correntes do
republicanismo, na época da discussão principal: a Lei Áurea.
Quando, enfim, ela foi aprovada e sancionada sem esse monstrengo, a
Princesa Isabel ouviu do Barão de Cotegipe a famosa frase: "Redimiu
uma raça e perdeu o trono".
Foram muitas as discussões em torno das reformas políticas, e alguns
debates parecem os de hoje. Os senadores resistiam com medo de perder
a vitaliciedade.
Houve quedas de gabinete, dissolução do Congresso, para se conseguir
votar uma das reformas: a Lei Saraiva, que modernizava o processo
eleitoral ao introduzir a eleição direta. O autor da lei convenceu o
imperador a fazer a proposta por lei ordinária, e ela passou mais
rapidamente. Ruy Barbosa disse que a lei representava mais do que 50
anos de reformas conservadoras. Mas ela tinha um problema: ao acabar
com o voto dos analfabetos, reduziu a 10% o tamanho do eleitorado.
Ainda que o voto do analfabeto se prestasse a manipulações, não
ocorreu aos liberais ou aos progressistas que o melhor a fazer não
era acabar com o voto dos que não sabiam ler e escrever, mas educar o
povo para o exercício do direito do voto. José Bonifácio, o moço,
disse na época que, ao excluir os analfabetos, a reforma havia criado
uma oração sem sujeito, uma democracia sem cidadãos. O voto em lista
da reforma política de hoje o que é se não tirar poder de decisão do
eleitor? Dias depois de fechar o livro, li o último número de uma
revista acadêmica, e lá estava um artigo tentando dar consistência
econômica à idéia de que a escravidão foi "suave" no Brasil. Há
várias lições em "D. Pedro II" para quem quer entender o debate de
hoje, a condescendência com nossos erros e essa mania de revestir de
falsa modernidade a resistência à mudança. Encontramse lá também,
como hoje, as críticas dos áulicos aos jornalistas e a insistência
nas pressões por se censurar a imprensa. Pressões às quais o
imperador sempre resistiu. Foi curioso, mas, ao visitar o passado,
não saí do tempo presente.