Daniel Piza
Por falar em casamentos, o da cara-de-pau com a incompetência continua o mais duradouro da nossa história. O governo Lula é apenas mais um capítulo dessa história, mas um capítulo dos mais ilustrativos. Afinal, durante muito tempo nos foi garantido por intelectuais e jornalistas que o PT era o “único partido” do Brasil, porque fundado em idéias - ainda que de um nacionalismo pseudomarxista (pseudomarxista porque Marx nunca foi nacionalista), incapaz de entender o capitalismo contemporâneo - e mais honesto e competente do que os demais. Marilena Chauí disse que “quando Lula fala, o mundo se ilumina”.
Veja, por exemplo, o que Lula falou no mesmo evento em que Marta Suplicy ofereceu como solução para os transtornos do caos aeroviário “relaxar e gozar”. O presidente disse que o problema do turismo brasileiro é a imprensa, que só mostra o que há de negativo nas diversas regiões. Bem, no domingo anterior a imprensa tinha mostrado o enorme sucesso da Parada Gay, que tomou a Avenida Paulista com mais de 3 milhões de pessoas (a precisão do número não altera o produto), muitas vindas do exterior. Entre os turistas estava um jornaleiro francês, Grégor Landouar, morto à noite, esfaqueado ao sair de restaurante nos Jardins. A mãe de Landouar havia pedido para o filho não vir, por causa da violência. Grégor, porém, tinha imagem positiva do Brasil e veio.
Lula prefere que a imprensa ignore a ineficiência do setor público - federal, estadual e municipal - em fazer aquilo para o qual é pago, como prover segurança e educação e zelar pela infra-estrutura. Se tais serviços fossem devidamente prestados, o turismo no Brasil seria bem melhor; um ministro com conhecimento do assunto também faria diferença. No entanto, o cidadão é obrigado a se deparar todo o tempo com a incompetência do passado - como se vê nos aeroportos construídos em regiões de clima inadequado - e do presente, verificável no índice de acidentes nas estradas no feriado. E ainda recebe, como ágio, o desrespeito da ministra.
Desfaçatez ainda maior é a que envolve as denúncias de que um cunhado e um irmão do presidente participavam da máfia dos caça-níqueis. A desculpa oficial para Vavá é a de que se trata de um sujeito sem “preparo intelectual”, “ingênuo”, como se isso fosse necessário para sair por aí pedindo propinas (o que já é um crime em si) e como se o “simples caseiro” Francenildo tivesse sido poupado, e não tido seu sigilo violado pela turma de Thomaz Bastos e Palocci. (Palocci, por sinal, foi condenado novamente pelas contas de sua gestão como prefeito de Ribeirão Preto, antes de se tornar o ministro adorado por articulistas tucanos.) E ainda há quem diga que, se não fosse irmão de Lula, Vavá não seria notícia. Agora ser irmão do presidente é irrelevante?
Já sobre o compadre, Morelli, muito mais que um ávido lambari, ninguém faz perguntas a Lula. Eu queria saber, na verdade, quem no círculo de relações do presidente ainda não está sob suspeita, salvo os que o abandonaram tão logo viram como o poder fede. Lula, repito há tanto tempo, representa o que há de mais arcaico na história do Brasil: a cultura do compadrio, da ação entre amigos, da sobreposição dos laços pessoais ao espírito público. E o resultado disso é mais do que o desperdício de dinheiro nos ralos da corrupção; é o rebaixamento geral dos valores de uma sociedade e a escassez de critérios e procedimentos técnicos no uso da máquina pública.
Como nossa imprensa, ao contrário do que diz Lula, é chapa-branca, muitos têm tomado o crescimento previsto para este ano - em torno de 4% - como razão para euforia e prova de eficácia do governo Lula. É claro que o governo Lula tomou algumas boas medidas, como a ampliação das reservas, o aumento real do salário mínimo, o fomento a créditos mais acessíveis e, em especial, a resistência a pressões de quase todos os companheiros para abrir mão do rigor fiscal. Mas isso é pouco. Os juros poderiam estar mais baixos, os gastos públicos não poderiam ter subido como continuam subindo, a carga tributária não deveria estar em 37% do PIB. Por tudo isso, e pela incapacidade de regular e incentivar infra-estrutura, o investimento (17%) não garante crescimento sustentável em patamar decente.
A ironia das ironias é que o governo Lula se beneficia sobretudo de medidas tomadas antes dele e contra as quais se declarou e atuou, como o Plano Real e a privatização (basta ver o papel de bancos e telefônicas no crescimento divulgado nesta semana), e dos ótimos ventos mundiais, como a alta das commodities e a grande liquidez corrente. Mas acha que é o causador de tudo, que o Estado é quem dirige a sociedade - tanto que disse recentemente que a bolsa de valores deveria agradecer a ele pelos recordes de negociações. De fato, ele fala e o mundo se ilumina... até o próximo apagão.
UMA LÁGRIMA
Para Richard Rorty, pensador americano, morto aos 75 anos na sexta retrasada. Ele se dizia seguidor do pragmatismo de John Dewey e William James, o qual tentava combinar com o pensamento pós-moderno, pós-Nietzsche. Não conseguiu. Ele, como Habermas, quis sair do beco niilista da filosofia da linguagem propondo o valor da conversação, da troca cultural, como um valor em si mesmo, capaz apenas de atenuar o sofrimento individual. Mas, também como o pensador alemão, não entendeu o progresso contemporâneo e desdenhou a ciência, a importância da veracidade em um mundo sem Verdade. Como ensaísta, escreveu sobre vários assuntos com uma linguagem clara e defendeu sempre o humanismo, ao contrário de alguns filósofos europeus em cuja teoria se baseou.
RODAPÉ (1)
Eu já estava lendo em inglês o novo livro de Ian McEwan, On Chesil Beach, quando sua tradução saiu no Brasil, Na Praia (Companhia das Letras). É uma boa novela, escrita com estilo, sobre um casal virgem, Edward e Florence, que vai para a noite de núpcias na praia de Chesil em 1962, no limiar da abertura contracultural. Não é que a situação não seja crível ou interessante e que McEwan não a descreva com a riqueza de percepção que lhe é habitual, misturando referências históricas e musicais para mostrar como um relacionamento sexual é tingido por outras áreas da sensibilidade e da memória. Mas é que o contraste com a época faz antever uma tensão que não vai além do superficial. O momento em que Edward se dá conta da complexidade interior da travada Florence, ao ler uma resenha sobre o concerto de violino dado por ela, decepciona, na linha do “O que ele tinha feito consigo mesmo?”
Embora seja muito difícil escrever sobre sexo com detalhes sem cair em termos vulgares ou clínicos e McEwan passe no teste, o livro não tem a força de, por exemplo, The Actual (acredite, Presença de Mulher), último de Saul Bellow, ou O Animal Agonizante, de Philip Roth, para citar duas novelas sobre vida íntima de autores que McEwan admira muito. Falta malícia e drama, talvez porque precisasse de mais páginas. O melhor livro de McEwan continua a ser Reparação.
RODAPÉ (2)
Já está nas livrarias a segunda antologia de O Pasquim, organizada por Sérgio Augusto e Jaguar (editora Desiderata). Embora os três primeiros anos tenham sido de mais sucesso e repercussão, este volume de 1972-73 tem alguns dos melhores textos do jornal, assinados por Paulo Francis (as “Notícias da Corte”, que mais tarde seriam “Diário da Corte”), Ivan Lessa (como o diálogo imaginário entre Sartre e Simone de Beauvoir, interrompido ao final por Truman Capote), Millôr, Sérgio, Henfil e grande elenco.
MINICONTO
Era a rainha do power point. Em suas palestras nas empresas, o mundo e o futuro eram explicados por seu laptop em diagramas coloridos e frases feitas, as quais lia com voz pausada e caneta de laser, ponto a ponto, meta a meta, num figurino tão exato quanto o de seu tailleur de grife, dentro do qual mantinha firme o corpo malhado em sessões diárias de ginástica. Também se orgulhava de administrar a casa, dividindo todas as contas com o marido, que buscava no final da tarde os filhos que ela deixara na escola de manhã cedo. Era boa motorista e sabia um ótimo caminho para fazer o percurso diário entre Alto de Pinheiros e Vila Olímpia em apenas 23 minutos, acontecesse o que acontecesse na cidade. Antes de dormir, ainda tinha tempo para checar as bolsas de valores na Ásia. Só não entendia por que diabos essa insônia baixava toda madrugada, às 3 h, com a pontualidade de um pregão virtual.
POR QUE NÃO ME UFANO
O governo José Serra escorregou feio no episódio da USP. Não entendo a necessidade de uma secretaria só para o ensino superior, a não ser pela mania latino-americana de resolver problemas criando órgãos. Se o decreto não pretendia interferir na autonomia das universidades, não precisaria ter sido formalmente esclarecido depois. Nada disso justifica a ação de algumas dúzias de estudantes manobrados por partidos como o PSOL, o qual Lenin diria sofrer da doença infantil do esquerdismo. Mas se jogou fora a oportunidade para uma discussão muito importante, a burocracia e improdutividade das universidades paulistas.