“Que absurdo a declaração da Matilde, não?” A frase dita por um amigo, em uma festa num elegante apartamento no Arpoador, veio seguida da afirmação de que o Brasil é um país miscigenado e que, portanto, a ministra não tinha razão alguma. Concordei em parte: os negros no Brasil não desenvolveram o sentimento do ódio racial aos brancos. Sorte do Brasil, que ainda tem chance de evitá-lo, construindo um país diverso.
A conversa que se seguiu tinha vários argumentos previsíveis.
O mais conhecido é o de que, no Brasil, todos se misturaram e, por isso, o brasileiro é de um gradiente de cores, sendo difícil reconhecer a fronteira racial.
Argumentei que o Brasil não é o único país que tem pessoas com tons diferenciados de pele, e isso não é prova da inexistência da discriminação. Os Estados Unidos, que segregaram, também têm. Ficou célebre aquela frase do ex-secretário de Estado Colin Powell: “I am not that black”, ou seja, não sou tão preto assim.
Meu amigo argumentou que Powell tomou remédio, como Michael Jackson.
Vale tudo para ressaltar as, supostamente inéditas, virtudes da miscigenação brasileira.
Houve miscigenação, claro.
São poucos os brasileiros que não têm uma história para contar sobre um negro entre os ascendentes.
Isso é que torna mais espantoso o racismo brasileiro, e a hegemonia, quase monopólio, dos brancos na elite. Não vou cansar os leitores com a repetição de estatísticas que provam o que tão poucos querem ver no Brasil: as distâncias sociais entre negros e brancos.
Elas são fortes e persistentes.
Aqui no país, o debate permanece congelado no primeiro capítulo: a terminologia do IBGE. O instituto de pesquisa chama de negros a soma de pretos e pardos. Não para manipular e crescer o número de negros, mas porque pretos são os de pele bem escura e mais fortes traços africanos; pardos são os que têm tez mais clara, mas têm também, em graus diferentes, a presença dos traços africanos.
Por que juntá-los num mesmo grupo em certos estudos? Porque, se formos comparar os indicadores sociais dos dois grupos — analfabetismo, desemprego, renda, analfabetismo funcional, mortalidade infantil, expectativa de vida —, eles estão muito próximos um do outro e ambos muito distantes dos brancos. O que leva à conclusão de que, sociologicamente, há uma identidade forte entre eles, e está certo o IBGE em agregálos ou desagregá-los nas suas estatísticas para mostrar as várias faces da desigualdade racial brasileira.
Gostaria que o debate no Brasil já tivesse superado o capítulo semântico. Como devem ser definidos os grupos que estatisticamente estão apartados? Ora, podese trocar o nome e a definição de cada grupo, agregálos ou desagregá-los, mas não se escondem os fatos e os números que provam a inaceitável desigualdade entre pretos e pardos em relação aos brancos.
Há também aquele argumento de que tudo isso é herança da escravidão. Esse argumento é curioso pois carrega em si uma inércia, uma aceitação da reprodução dessa desigualdade herdada, como se fosse um determinismo atávico. Como não podemos mudar o passado, então que suas cicatrizes se reproduzam indefinidamente nos tempos modernos. Não será nossa culpa. O pesquisador do Ipea Sergei Soares fez um estudo recente em que acompanhou o que aconteceu com a geração que nasceu em 1980. Ela chegou à idade adulta reproduzindo as mesmas desigualdades raciais. Jovens negros e brancos, nascidos quase um século depois do fim da escravidão, no país onde supostamente não há racismo, no país que se misturou, no país moreno, ainda estão apartados. Por que será? Mesmo brasileiros inteligentes não se perguntam isso. O meu amigo da festa tem mente atilada e bem treinada; com ele, tenho conversado com gosto sobre economia, que é sua especialidade. Mas também ele não se pergunta questões óbvias como essas. Por isso, no nosso pequeno debate ali no canto da sala em três ambientes, eu apresentei um argumento visual: — Olhe nesta festa. Onde estão os negros? Eles estão apenas tocando para nós ou nos servindo. Eles não estão entre os convidados.
Por que será? Voltou o argumento de que somos todos negros, de certa forma, sob certo ponto de vista genético.
— Você mesma tem antepassados negros.
Se, por um acaso do DNA, tivesse a cor desses antepassados, não teria eu encontrado mais barreiras na minha trajetória? Ele acha que não. Eu acho que sim.
Como há poucos negros na elite brasileira, ou eles estão sendo barrados ou são menos capazes. Eu acredito firmemente na primeira hipótese.
— Não vou te aborrecer mais com este assunto — disse meu amigo, se afastando.
É isso. Esse assunto é considerado inconveniente.
Quando é inevitável enfrentálo, a tendência é se agarrar a teses que qualquer análise displicente da realidade brasileira desmente e repetir velhos sofismas confortáveis que anestesiam a inteligência.
No dia seguinte, navegava no site do “Washington Post/Newsweek”, e lá estava um debate sobre como as empresas podem conquistar mais diversidade étnica em todos os níveis gerenciais.
Partia do ponto de que ter negros e brancos compartilhando suas diretorias aumenta a competitividade das empresas. É terrível ver os americanos na dianteira também nesse campo. Eles que sempre foram acusados, com razão, de racismo explícito como acaba de acontecer na rádio CBS. A propósito: o radialista que ofendeu as jogadoras negras foi demitido.
Entrevista:O Estado inteligente
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