em O Estado de São Paulo
Hoje cerca de 100 milhões de brasileiros irão às urnas. Sabemos das distorções de nossa democracia. Apesar disso, se fizermos a reforma eleitoral e introduzirmos o voto distrital, se o Congresso não anular a cláusula de barreira e assegurar na legislação a fidelidade partidária, teremos dado passos importantes. Falta, entretanto, o principal: que os partidos tenham um significado mais claro para o povo e que o mundo político não continue tão afastado da sociedade. O resto dependerá da consolidação da democracia em sentido amplo, com maior acesso à informação, melhor sistema educacional e maior disponibilidade de canais para a participação de segmentos crescentes da sociedade no processo deliberativo, e não apenas no processo eleitoral.
Hoje cerca de 100 milhões de brasileiros irão às urnas. Sabemos das distorções de nossa democracia. Apesar disso, se fizermos a reforma eleitoral e introduzirmos o voto distrital, se o Congresso não anular a cláusula de barreira e assegurar na legislação a fidelidade partidária, teremos dado passos importantes. Falta, entretanto, o principal: que os partidos tenham um significado mais claro para o povo e que o mundo político não continue tão afastado da sociedade. O resto dependerá da consolidação da democracia em sentido amplo, com maior acesso à informação, melhor sistema educacional e maior disponibilidade de canais para a participação de segmentos crescentes da sociedade no processo deliberativo, e não apenas no processo eleitoral.
Estamos longe deste ideal. Nem por isso o significado do voto deve ser diminuído. Ganhe quem ganhar (e eu luto para que Geraldo Alckmin seja eleito), a voz das urnas será acatada e seu significado precisará ser decifrado. Depois da avalanche de escândalos e da desfaçatez do presidente em se livrar de qualquer responsabilidade pelas muitas arbitrariedades e falcatruas que seus mais íntimos colaboradores e os líderes de seu partido orquestraram, seria de pasmar que ele ganhasse no primeiro turno. Entretanto, mesmo que a votação em Alckmin e nos demais candidatos de oposição nos leve ao segundo turno, como acho desejável e possível, uma enxurrada de votos será despejada no novo taumaturgo, o homem que se crê a encarnação viva de nossa História e dos destinos do País e que, só por esquecimento, não proclamou a independência no último 7 de setembro.
Entende-se que milhões de votos que o sufragarão venham do povo mais pobre e também dos beneficiários do setor financeiro e de alguns setores das atividades econômicas ou da burocracia pública. Há razões concretas para isso. Afinal, dada a conjuntura econômica mundial favorável, dada a continuidade da “herança maldita” com seus desdobramentos nas políticas públicas, houve melhoria das condições de vida e na economia. Neste caso, o voto encontra apoio em interesses concretos e legítimos. Mas não é só isso que está em causa.
Até passado recente milhões de brasileiros tinham confiança quase ilimitada em Lula. Ele se notabilizara como um líder sindical que expressava um momento novo da sociedade e era autêntico. Recusava epítetos ideológicos e, quando lhe perguntavam se era de esquerda ou socialista, respondia que era torneiro mecânico. Tosco, mas vigoroso e verdadeiro. Conheci-o de perto nessa época e o respeitava como pessoa e como símbolo. Este respeito se manteve nas campanhas em que lutamos juntos, nas em que fomos adversários e naquela em que ele foi vencedor. Sempre o achei mais símbolo que líder, e digo isso não para diminuí-lo, posto que líderes há muitos e símbolos são poucos.
Entristece-me vê-lo agora despedaçando seu significado e se transformando num político banal, esperto, que diz uma coisa hoje, outra amanhã, que beija a mão em que cuspia e outra coisa não faz com o prato no qual está comendo, a “herança maldita”, como a qualifica. Tenta desfigurar o enorme esforço feito pelo País, com o Plano Real, a reconstrução do Estado, a renovação das políticas públicas, a rede de proteção social, a consolidação da democracia e a luta por um Brasil mais decente.
Que ele se pense pai dos pobres e mãe dos ricos, que creia ser alguém que não erra nem dá o braço a torcer, que nada tem que ver com os desvios de conduta de seus ministros, dos dirigentes políticos que escolheu ou de auxiliares próximos, tanto melhor para seu conforto. O grave é quando seus partidários o acompanham nesse sentimento: a reação do presidente do PT, acusado pelo presidente de responsável pela montagem do grupo que urdiu o infame dossiê Cuiabá, “se Lula falou, está falado”, é a demonstração cabal do aviltamento do que outrora se considerava e era um partido de esquerda. Um partido que nasceu para ampliar a participação popular se transformou em máquina burocrática que a sufoca.
Um partido que nasceu reformador na esquerda e um líder que veio para renovar caíram na armadilha do clientelismo e do patrimonialismo, vestindo-os com os trajes “modernos” da sociedade em redes: encastelaram-se no Estado, formaram novos anéis burocráticos, articularam-se com os interesses da grande empresa. Dispondo das técnicas de espionagem e de “expropriação” herdadas do romantismo revolucionário, ampliaram de muito a capacidade de se informar e de utilizar as brechas do controle social para obter recursos ilegítimos.
O que está em jogo é, portanto, muito mais do que discutir até que ponto houve avanços sociais ou econômicos no governo Lula e compará-los com o governo passado. Quantos ditadores ou populistas justificaram seus arbítrios e aumentaram sua popularidade alegando ganhos materiais, reais ou imaginários, para o povo? Não estou falando de “chavismo” ou coisa que o valha. Lula é bastante conservador e nada tem de antiamericano ou de antiglobalização para arriscar-se a tais propósitos. Falo de algo mais essencial: o abastardamento da função pública, o fomento à arapongagem particular ou partidária, o avanço do PT e seus aliados no controle da máquina pública e das empresas do Estado, transformando-as em instrumentos vis a serviço da sordidez, como se viu na quebra de sigilo da Caixa Econômica ou, agora, no envolvimento de um diretor do Banco do Brasil em operação de chantagem. Em suma, o desvirtuamento da democracia.
Esta precisa consolidar-se como um sistema em que as escolhas se baseiam em informações, na deliberação, e não na manipulação das massas, no controle de uma burocracia partidária ou na idolatria de um líder. Quem mina o ideal democrático com estas práticas não pode receber o apoio dos democratas. Além das qualidades intrínsecas que Geraldo Alckmin possui para receber o voto, há, portanto, uma questão de princípio envolvida na decisão eleitoral. Os eleitores têm motivos suficientes, portanto, para barrar o descalabro das instituições e a desmoralização das práticas democráticas.
Entende-se que milhões de votos que o sufragarão venham do povo mais pobre e também dos beneficiários do setor financeiro e de alguns setores das atividades econômicas ou da burocracia pública. Há razões concretas para isso. Afinal, dada a conjuntura econômica mundial favorável, dada a continuidade da “herança maldita” com seus desdobramentos nas políticas públicas, houve melhoria das condições de vida e na economia. Neste caso, o voto encontra apoio em interesses concretos e legítimos. Mas não é só isso que está em causa.
Até passado recente milhões de brasileiros tinham confiança quase ilimitada em Lula. Ele se notabilizara como um líder sindical que expressava um momento novo da sociedade e era autêntico. Recusava epítetos ideológicos e, quando lhe perguntavam se era de esquerda ou socialista, respondia que era torneiro mecânico. Tosco, mas vigoroso e verdadeiro. Conheci-o de perto nessa época e o respeitava como pessoa e como símbolo. Este respeito se manteve nas campanhas em que lutamos juntos, nas em que fomos adversários e naquela em que ele foi vencedor. Sempre o achei mais símbolo que líder, e digo isso não para diminuí-lo, posto que líderes há muitos e símbolos são poucos.
Entristece-me vê-lo agora despedaçando seu significado e se transformando num político banal, esperto, que diz uma coisa hoje, outra amanhã, que beija a mão em que cuspia e outra coisa não faz com o prato no qual está comendo, a “herança maldita”, como a qualifica. Tenta desfigurar o enorme esforço feito pelo País, com o Plano Real, a reconstrução do Estado, a renovação das políticas públicas, a rede de proteção social, a consolidação da democracia e a luta por um Brasil mais decente.
Que ele se pense pai dos pobres e mãe dos ricos, que creia ser alguém que não erra nem dá o braço a torcer, que nada tem que ver com os desvios de conduta de seus ministros, dos dirigentes políticos que escolheu ou de auxiliares próximos, tanto melhor para seu conforto. O grave é quando seus partidários o acompanham nesse sentimento: a reação do presidente do PT, acusado pelo presidente de responsável pela montagem do grupo que urdiu o infame dossiê Cuiabá, “se Lula falou, está falado”, é a demonstração cabal do aviltamento do que outrora se considerava e era um partido de esquerda. Um partido que nasceu para ampliar a participação popular se transformou em máquina burocrática que a sufoca.
Um partido que nasceu reformador na esquerda e um líder que veio para renovar caíram na armadilha do clientelismo e do patrimonialismo, vestindo-os com os trajes “modernos” da sociedade em redes: encastelaram-se no Estado, formaram novos anéis burocráticos, articularam-se com os interesses da grande empresa. Dispondo das técnicas de espionagem e de “expropriação” herdadas do romantismo revolucionário, ampliaram de muito a capacidade de se informar e de utilizar as brechas do controle social para obter recursos ilegítimos.
O que está em jogo é, portanto, muito mais do que discutir até que ponto houve avanços sociais ou econômicos no governo Lula e compará-los com o governo passado. Quantos ditadores ou populistas justificaram seus arbítrios e aumentaram sua popularidade alegando ganhos materiais, reais ou imaginários, para o povo? Não estou falando de “chavismo” ou coisa que o valha. Lula é bastante conservador e nada tem de antiamericano ou de antiglobalização para arriscar-se a tais propósitos. Falo de algo mais essencial: o abastardamento da função pública, o fomento à arapongagem particular ou partidária, o avanço do PT e seus aliados no controle da máquina pública e das empresas do Estado, transformando-as em instrumentos vis a serviço da sordidez, como se viu na quebra de sigilo da Caixa Econômica ou, agora, no envolvimento de um diretor do Banco do Brasil em operação de chantagem. Em suma, o desvirtuamento da democracia.
Esta precisa consolidar-se como um sistema em que as escolhas se baseiam em informações, na deliberação, e não na manipulação das massas, no controle de uma burocracia partidária ou na idolatria de um líder. Quem mina o ideal democrático com estas práticas não pode receber o apoio dos democratas. Além das qualidades intrínsecas que Geraldo Alckmin possui para receber o voto, há, portanto, uma questão de princípio envolvida na decisão eleitoral. Os eleitores têm motivos suficientes, portanto, para barrar o descalabro das instituições e a desmoralização das práticas democráticas.