Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 01, 2006

JOÃO UBALDO RIBEIRO É, vamos lá

É, vamos lá

João Ubaldo Ribeiro

Espero, nesta primavera falsificada em que tem feito tanto frio, que hoje seja, em todo este país imenso, um belo domingo de sol tropical. Belos domingos de sol não dependem da interferência do Estado, nem ainda existem taxas ou impostos que nos cobrem por eles. E desta forma, encantadora leitora, gentil leitor, podemos tentar deixar de lado os problemas que todo mundo carrega e procurar nosso programa favorito para um domingo assim. Claro, ia me passando, hoje tem eleição. Não deixem que também lhes passe, uns porque quiçá prefiram dormir, outros porque não notaram que havia uma campanha eleitoral em andamento, outros porque ficam indignados por serem obrigados a votar e assim por diante.

Hesito em falar hoje nessas coisas eleitorais, porque me lembro, na velha Faculdade de Direito da Bahia, do mestre Adalício Nogueira, luminar do Direito Romano e homem de severidade universalmente temida, fulminar-nos do alto da cátedra e advertir a todos nós, calouros e futuros causídicos (eu não, pois, para o bem da ciência jurídica brasileira, não fui lá buscar o diploma): “Atenção para um princípio basilar! Nemini licet ignorare legem! Não há desculpa!” Pois é, desde os romanos ninguém pode alegar ignorância da lei para se livrar de suas malhas implacáveis, embora, no Brasil, se alegue praticamente tudo, inclusive a influência de uma nota de cem na interpretação dada pelo guarda a um dispositivo do Código de Trânsito.

Como, ai de mim, não conheço todas as leis, só pode acometer-me insegurança, em ocasião na qual tão facilmente se ferem suscetibilidades. Não quero infringir dispositivo de lei, medida provisória, regulamento, portaria, instrução, bilhetinho com timbre, recado do doutor, nada, nada dos muitos papelotes com que nos tiranizam desde que nascemos, pois não só disputo minhas parcas notas de cem com considerável trabalho como porque também não disponho de outras alegações igualmente acatadas, tais como “não vi”, “não sei”, “não é comigo”, “foi a herança maldita” e assim por diante. Não há ao menos quem mande quebrar rapidinho o sigilo bancário do meu denunciante, para ajudar a dissuadi-lo de me entregar. Nem mesmo tenho um subescrevedor de crônicas, para botar a culpa nele, demiti-lo e continuar, à sorrelfa (dicionário? sinceramente, essa eu não esperava, mas vão fazer exercício de qualquer forma, o domingo está ótimo para essas coisas), usando os serviços dele. E, assim, em suplicante paz com a justiça eleitoral, nada falo sobre candidatos e assuntos que temo sejam considerados polêmicos.

Pelo contrário, desempenho minha parte no processo democrático e eleitoral, como manda o senso cívico de um cidadão que se deseja prestante. Concito a linda leitora e o guapo leitor a votar. Sim, não vai dar para conferir os votos depois, se houver problema, mas não vamos pensar besteira, nossas urnas são as melhores urnas americanas do mundo, que nem eles mesmos usam muito por lá. E não se queixem por serem obrigados a votar. Vamos reconhecer nossas falhas. Se o voto não fosse obrigatório, ter-se-ia que organizar, por exemplo, um rodízio de praias pelo menos no Rio e em Salvador, em função da multiplicação exponencial da demanda. Em outras cidades sem praia, acredito que as opções de lazer seriam também insuficientes, correndo nós o risco de virmos a ter toda uma nova e vastíssima geração de brasileirinhos nascidos nove meses a partir de hoje, eis que quem não tem cão caça com gato e muitos preferem logo o gato.

Sim, e daí? – diria o inocente jovem que por acaso me lê. Ora, meu rapaz, como se legitimariam nossos representantes, sem votos? Se o voto não fosse obrigatório, não sei se seria absurdo imaginar um deputado eleito com uns 500 votinhos. Não poderia proclamar falar em nome de milhões ou centenas de milhares de brasileiros que nele depositaram confiança. Claro, continuaria não representando ninguém exceto a meia dúzia de três ou quatro que lhe interessa mais de perto, como faz a maioria até hoje, mas não poderia falar bonito, para mais alto erguer a glória de nossa democracia. Como não votar e assim não levar ao poder aqueles que, através da História desta república, tanto têm feito por nós, os governados, a ponto de nos legarem o País que aí está, para qualquer um ver? Portanto, o Estado, que foi criado para nos servir e não cessa um só instante de zelar por nós, aqui na educação, ali na saúde, acolá na segurança, não ia deixar que cometêssemos tamanha irresponsabilidade e aí somos obrigados a votar, é para o nosso próprio bem.

Sim, sim, às urnas, cidadãos! Não necessariamente por mudanças, porque repetidamente nos asseveram que as coisas estão boas como estão e melhorando cada vez mais. Além do que o lema da república parece ser um sensato e conservador “não muda nada aí”. Às vezes se diria que estão falando até de outro país, mas isso é por causa de nossa alienação – não damos valor ao que é nosso e não temos boa vontade para ver como aqui somos todos felizes. E felizes continuaremos, pagando nossos impostos e nossas multas, estas tão importantes que têm até metas de arrecadação e são itens fundamentais de vários orçamentos públicos – é multando que se constrói.

E vamos votar logo cedo, porque com isso nos desincumbimos logo do dever e ficamos livres para curtir o resto do domingo. Domingo diferente, sim. Até ser preso ninguém pode, com o que desfrutamos do mesmo privilégio de quem devia ser, mas não é preso em dia nenhum. E não sei se ainda é proibido beber em dia de eleição, mas, pelo que tenho testemunhado, quem é chegado a um goró pode ir em frente. As autoridades são compreensivas, fazem vista grossa e até gostam, elas sabem que o pessoal bebe para esquecer.

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