Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 15, 2006

Segundo turno

Segundo turno

Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC

Celso Lafer

Dia 29 teremos o segundo turno das eleições presidenciais. Qual é a razão de um segundo turno? Eleições disputadas com diferenças pequenas entre vencedores e vencidos têm ocorrido em muitos países. Na Alemanha em 2005, na Itália em 2006, que são regimes parlamentaristas, e mais recentemente no México, que é um sistema presidencialista sem segundo turno, e antes nos EUA, na primeira eleição de Bush, em 2000. Neste contexto podem surgir tensões, pois o número de votos da maioria relativa do vitorioso pode ser visto como insuficiente ou até minoritário para a plena legitimação de um governo democrático.

O segundo turno, num sistema presidencialista, é meio de aplacar estas tensões pela plena aplicação da regra da maioria. Esta é a que cabe no trato de interesses gerais, como é o caso da escolha do presidente da República, pois maximiza a liberdade concebida como autodeterminação da cidadania. O segundo turno a consagra. Permite, com base no sufrágio universal, uma decisão coletiva que assegura uma definição pelo cômputo de uma maioria absoluta, e não relativa, de votos. Promove, assim, a aceitação dos resultados. Disto é exemplo a eleição presidencial deste ano no Chile.

A maioria absoluta dos votos válidos não foi alcançada no primeiro turno por nenhum dos candidatos, como foi em 1994 e 1998 por Fernando Henrique Cardoso. Assim, nos termos da Constituição, os dois mais votados no primeiro turno, Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin, disputarão o segundo turno.

Num primeiro turno, com vários candidatos, o eleitor expressa uma ordem de preferência. No segundo turno vota depois de verificar o que ocorreu no primeiro. É a oportunidade que tem o eleitor, inclusive o que se absteve, votou em branco ou anulou seu voto, para reajustar suas preferências à luz das circunstâncias. Neste contexto, lideranças e partidos também renovam suas considerações, pois o segundo turno abre o campo para um reagrupamento das preferências no espaço competitivo aberto por duas candidaturas. Esta é a lógica política e eleitoral do segundo turno.

O ato de eleger num segundo turno é um novo parar para pensar, selecionando, mediante um juízo sobre duas candidaturas, quem irá exercer a função governamental. Este juízo é uma escolha sobre o tipo de gestão pública que melhor atenderá ao interesse geral do País. A representação democrática, fruto da eleição, é, assim, a disputa pelo encargo de prover um governo responsável para o País. Isto significa um governo que atenda a duas expectativas: a de ser receptivo às aspirações da população e a de ser eficiente no trato destas aspirações, no exercício do poder-dever de iniciativa e orientação política.

Na candidatura Lula não capto o ânimo de um governo responsável. A sua gestão presidencial revelou a vocação para uma organizada e sistemática associação ilícita entre o dinheiro e o poder, de que são exemplos mais notórios a prática do “mensalão”, o capítulo dos “sanguessugas” e o “dossiêgate”. A resposta do governo e dos seus adeptos às críticas lembram a “sublime” lei da equivalência das janelas proposta por personagem de Machado de Assis: ir compensando uma janela fechada, ao abrir outra, “a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência”.

Não vislumbro eficiência com a continuidade anti-republicana do aparelhamento do Estado por integrantes do partido e dos sindicalistas ligados ao presidente da República. Considero discutível uma gestão da economia que, tendo como ponto de partida uma estabilização econômica consolidada e modernizada pelo meritório legado de FHC, não soube aproveitar uma conjuntura externa extremamente favorável para promover um salto de desenvolvimento. Reitero a inconformidade de jurista com a propensão ao arbítrio antidemocrático, ilustrada na violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo. Entendo trôpego um estilo de liderança que é fanfarrão nas suas afirmações e descabido na sua aspiração de ombrear-se a Jesus, Tiradentes, Getúlio e JK. Como esclarece o provérbio, “grande gabador, pequeno fazedor”.

Em contraste, vejo na candidatura Geraldo Alckmin, na linha da sua família política, que inclui José Serra e Aécio Neves, os ingredientes para um governo responsável, tanto na dimensão da receptividade às aspirações da população quanto no trato eficiente destas aspirações.

Começo com o estilo da liderança. Todos nós temos na vida a estratégia da nossa personalidade, e nos embates, para sermos bem-sucedidos, precisamo-nos valer das nossas armas, e não das alheias. Como dizia o padre Antonio Vieira, evocando a Bíblia, as armas de Saul servem a Saul; as de Davi, a Davi. No combate que trava com o Golias das inverdades, os trunfos de Geraldo são os dele, e não os de outras lideranças, e o que vem caracterizando a sua campanha é a coerente autenticidade da sua maneira de ser. Um dos seus traços é a determinação. A competente determinação com que se sagrou candidato, chegou, contrariando expectativas, ao segundo turno e acumulou forças para afirmar-se no debate da Band no último domingo. É um estilo próprio de liderança que combina aplicação, princípios e a boa-fé da leal disposição de integridade que permeia a sua conduta.

Foi este estilo que o guindou, pelo sucesso eleitoral, a posições de responsabilidade nas quais adquiriu experiência - a experiência do saber observar com clareza, seleção e critério. Do que fez, e bem, como governador de São Paulo, sucessor do legado de Mário Covas, recolheu um dos temas recorrentes da sua proposta: o choque de gestão. Sem este choque, que pressupõe estabelecer prioridades e fazer o mais com recursos limitados, haverá demagogia, mas não eficiência no trato das aspirações da população. A elas Alckmin é sensível e receptivo por sua vocação de médico, atento à saúde da res publica e das instituições, e por um cristianismo solidário voltado, sem as inconseqüências do seu adversário, para o bem comum.

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