Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC
Celso Lafer
Dia 29 teremos o segundo turno das eleições presidenciais. Qual é a razão de um segundo turno? Eleições disputadas com diferenças pequenas entre vencedores e vencidos têm ocorrido em muitos países. Na Alemanha em 2005, na Itália em 2006, que são regimes parlamentaristas, e mais recentemente no México, que é um sistema presidencialista sem segundo turno, e antes nos EUA, na primeira eleição de Bush, em 2000. Neste contexto podem surgir tensões, pois o número de votos da maioria relativa do vitorioso pode ser visto como insuficiente ou até minoritário para a plena legitimação de um governo democrático.
O segundo turno, num sistema presidencialista, é meio de aplacar estas tensões pela plena aplicação da regra da maioria. Esta é a que cabe no trato de interesses gerais, como é o caso da escolha do presidente da República, pois maximiza a liberdade concebida como autodeterminação da cidadania. O segundo turno a consagra. Permite, com base no sufrágio universal, uma decisão coletiva que assegura uma definição pelo cômputo de uma maioria absoluta, e não relativa, de votos. Promove, assim, a aceitação dos resultados. Disto é exemplo a eleição presidencial deste ano no Chile.
A maioria absoluta dos votos válidos não foi alcançada no primeiro turno por nenhum dos candidatos, como foi em 1994 e 1998 por Fernando Henrique Cardoso. Assim, nos termos da Constituição, os dois mais votados no primeiro turno, Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin, disputarão o segundo turno.
Num primeiro turno, com vários candidatos, o eleitor expressa uma ordem de preferência. No segundo turno vota depois de verificar o que ocorreu no primeiro. É a oportunidade que tem o eleitor, inclusive o que se absteve, votou em branco ou anulou seu voto, para reajustar suas preferências à luz das circunstâncias. Neste contexto, lideranças e partidos também renovam suas considerações, pois o segundo turno abre o campo para um reagrupamento das preferências no espaço competitivo aberto por duas candidaturas. Esta é a lógica política e eleitoral do segundo turno.
O ato de eleger num segundo turno é um novo parar para pensar, selecionando, mediante um juízo sobre duas candidaturas, quem irá exercer a função governamental. Este juízo é uma escolha sobre o tipo de gestão pública que melhor atenderá ao interesse geral do País. A representação democrática, fruto da eleição, é, assim, a disputa pelo encargo de prover um governo responsável para o País. Isto significa um governo que atenda a duas expectativas: a de ser receptivo às aspirações da população e a de ser eficiente no trato destas aspirações, no exercício do poder-dever de iniciativa e orientação política.
Na candidatura Lula não capto o ânimo de um governo responsável. A sua gestão presidencial revelou a vocação para uma organizada e sistemática associação ilícita entre o dinheiro e o poder, de que são exemplos mais notórios a prática do “mensalão”, o capítulo dos “sanguessugas” e o “dossiêgate”. A resposta do governo e dos seus adeptos às críticas lembram a “sublime” lei da equivalência das janelas proposta por personagem de Machado de Assis: ir compensando uma janela fechada, ao abrir outra, “a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência”.
Não vislumbro eficiência com a continuidade anti-republicana do aparelhamento do Estado por integrantes do partido e dos sindicalistas ligados ao presidente da República. Considero discutível uma gestão da economia que, tendo como ponto de partida uma estabilização econômica consolidada e modernizada pelo meritório legado de FHC, não soube aproveitar uma conjuntura externa extremamente favorável para promover um salto de desenvolvimento. Reitero a inconformidade de jurista com a propensão ao arbítrio antidemocrático, ilustrada na violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo. Entendo trôpego um estilo de liderança que é fanfarrão nas suas afirmações e descabido na sua aspiração de ombrear-se a Jesus, Tiradentes, Getúlio e JK. Como esclarece o provérbio, “grande gabador, pequeno fazedor”.
Em contraste, vejo na candidatura Geraldo Alckmin, na linha da sua família política, que inclui José Serra e Aécio Neves, os ingredientes para um governo responsável, tanto na dimensão da receptividade às aspirações da população quanto no trato eficiente destas aspirações.
Começo com o estilo da liderança. Todos nós temos na vida a estratégia da nossa personalidade, e nos embates, para sermos bem-sucedidos, precisamo-nos valer das nossas armas, e não das alheias. Como dizia o padre Antonio Vieira, evocando a Bíblia, as armas de Saul servem a Saul; as de Davi, a Davi. No combate que trava com o Golias das inverdades, os trunfos de Geraldo são os dele, e não os de outras lideranças, e o que vem caracterizando a sua campanha é a coerente autenticidade da sua maneira de ser. Um dos seus traços é a determinação. A competente determinação com que se sagrou candidato, chegou, contrariando expectativas, ao segundo turno e acumulou forças para afirmar-se no debate da Band no último domingo. É um estilo próprio de liderança que combina aplicação, princípios e a boa-fé da leal disposição de integridade que permeia a sua conduta.
Foi este estilo que o guindou, pelo sucesso eleitoral, a posições de responsabilidade nas quais adquiriu experiência - a experiência do saber observar com clareza, seleção e critério. Do que fez, e bem, como governador de São Paulo, sucessor do legado de Mário Covas, recolheu um dos temas recorrentes da sua proposta: o choque de gestão. Sem este choque, que pressupõe estabelecer prioridades e fazer o mais com recursos limitados, haverá demagogia, mas não eficiência no trato das aspirações da população. A elas Alckmin é sensível e receptivo por sua vocação de médico, atento à saúde da res publica e das instituições, e por um cristianismo solidário voltado, sem as inconseqüências do seu adversário, para o bem comum.