Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, outubro 20, 2006

Perdeu o pêlo, mas não o vício


Editorial
O Estado de S. Paulo
20/10/2006

Diz a sabedoria popular que "o lobo perde o pêlo, mas não perde o vício". O ex-presidente e homem forte do PT, José Dirceu, perdeu o cargo de ministro, perdeu o mandato de deputado, perdeu o direito de se candidatar nesta e na próxima eleição nacional - e pode perder muito mais se for condenado por corrupção ativa e formação de quadrilha no processo do mensalão, aberto no STF, por iniciativa da Procuradoria-Geral da República, contra ele e 39 outros envolvidos na lambança do valerioduto. Ele só não perdeu o vício da prepotência e do autoritarismo. Como todo vício, este o assalta até nos momentos mais inoportunos - por exemplo, agora, quando falta uma dezena de dias apenas para uma reeleição que se desenha cada vez mais espetacular.

Por isso, a diatribe do companheiro de Lula - uma raivosa nota de 45 linhas no seu blog - deixou perplexo o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Marco Aurélio Mello. O que mais o intrigou na investida do ex-ministro contra "setores do Poder Judiciário, do TSE e do TCU", por seu suposto engajamento numa inédita "frente ampla" contra Lula e o PT, foi a sua gratuidade. "A situação do candidato que tenta a reeleição é tão tranqüila, segundo as pesquisas", argumenta Mello. "Por que estão apelando?" O ditado do pêlo e do vício talvez explique. Para a viciosa mentalidade totalitária, qualquer ocasião é boa para arremeter contra todos quantos ousam não obedecer aos ditames do Líder e do Partido, ou denunciam as suas mazelas e cacoetes incompatíveis com a decência política e a liberdade de crítica.

É apenas natural, portanto, que Dirceu conceba uma fronda antipetista e anti-Lula integrada por juízes, fiscais de governos, partidos de oposição, os "novos burocratas da mídia" - seja lá o que isso queira dizer - e "as eternas elites privilegiadas do nosso Brasil". (O possessivo decerto foi um lapso freudiano.) Nessas elites ele inclui, com característico e redundante palavreado, "a fina flor da direita conservadora, as oligarquias, as elites endinheiradas de São Paulo (São Paulo virou saco de pancada do lulopetismo), setores da classe média udenista" - lo que quieras, como dizem os espanhóis. O cinismo seria de espantar se não partisse de quem parte. Com o imenso telhado de vidro do presidente e do PT, que autoridade tem o blogueiro manda-brasa para falar em oligarquias? Não é o primeiro oligarca da política nacional, o ex-presidente José Sarney, o primeiro aliado também de Lula?

Oligarcas - dos mais antigos aos mais recentes, como o clã dos irmãos Gomes no Ceará -, corruptores e corruptos cercam um chefe de governo de quem não se sabe qual o traço dominante: a complacência ou o oportunismo. Ele já nem sequer se peja de ser visto em público transbordando alegria ao confraternizar com o czar da economia da ditadura militar, o deputado não reeleito Delfim Netto, outrora tido no petismo como a encarnação do mal absoluto de que são capazes de fazer ao povo as "elites endinheiradas de São Paulo". Isso, pelo visto, é pré-história. Agora do mesmo lado - o da "esquerda progressista", diria Dirceu -, Lula atribui a derrota eleitoral do novo companheiro de viagem à "vingança de um conjunto de elitistas". Mas a verrina do ex-ministro revela algo além de sua conhecida propensão a desfigurar até as realidades mais evidentes, como a naturalidade da aliança do lulismo com as oligarquias.

Os ataques de Dirceu à mídia, embora nada tenham de novo e sejam o que se poderia esperar de quem notoriamente concebe a democracia apenas como um instrumento de poder a ser manipulado para fins antidemocráticos - Cuba de Fidel é a sua segunda pátria -, emitem um duplo sinal de alarme. Primeiro, ao escancarar que o viés totalitário do velho PT está vivo, passa bem e não tem nenhuma incompatibilidade com o imitigado pragmatismo do novo PT, o seu viés pecuniário, por assim dizer. E segundo, porque sustenta a previsão de que, no segundo mandato que parece ao alcance da mão de Lula, o petismo voltará à carga com as suas tentativas de controlar a sociedade, intimidando a imprensa e a produção cultural, que o clamor da opinião pública sepultou nos anos recentes.

Nesse sentido, Dirceu prestou um involuntário serviço ao País. Ensinou que, se as urnas do próximo dia 29 produzirem o que se prevê, os democratas brasileiros devem se preparar não só para novos combates contra a corrupção federal, mas ainda para resistir a novos surtos liberticidas.

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