Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 14, 2006

O controle de vôo falhou?


As investigações apuram se erros
no Cindacta podem ter contribuído
para o desastre do Boeing da Gol


Rafael Corrêa e Rosana Zakabi


Força Aérea Brasileira
Equipe de resgate ergue os escombros do Boeing: em busca das últimas vítimas



Transcorridas duas semanas da queda do Boeing 737-800 da Gol nas selvas de Mato Grosso, provocada pelo choque com um jato Legacy e responsável pela morte de 154 pessoas, as causas da tragédia ainda estão sob investigação. Até agora, tem-se como certo que o Legacy voava a uma altitude em que não deveria estar, diferente daquela determinada por seu plano de vôo inicial. Também não há dúvidas de que, no jatinho, o aparelho chamado transponder – que transmite os dados sobre velocidade, altitude e direção para o controle aéreo em terra – ficou inoperante em parte do trajeto até o choque com o Boeing. Na semana passada, reforçou-se a convicção de que as bases de controle do tráfego aéreo também podem ter contribuído para a série de falhas que derrubou o avião da Gol. Não se trata, pelo que se sabe até o momento, de responsabilizar os controladores de vôo pelo ocorrido, mas de apurar a possibilidade de ter havido erro humano e também de computadores no controle de tráfego em Brasília, base do Cindacta 1.

De acordo com o plano de vôo, o Legacy deveria voar na altitude de 37 000 pés até Brasília e descer a 36 000 pés na UZ6, a aerovia para Manaus. Quatrocentos quilômetros adiante, num ponto virtual conhecido como Teres, subiria para 38 000 pés. Pouco antes de chegar a Brasília, a tela do Cindacta 1 acusou que o transponder da aeronave tinha problemas – na indicação da altitude do Legacy, apareciam alternadamente o número correto e um ponto de interrogação. Esse símbolo é um indicativo de mau funcionamento do equipamento. Os controladores tentaram contatar a tripulação do Legacy por rádio, mas não conseguiram. Quando o jatinho sobrevoou Brasília, seu transponder passou a funcionar normalmente, mas voltou a falhar em seguida. A passagem do jatinho pela capital federal coincidiu com a troca de turno na base do Cindacta 1 em Brasília. Nesse momento, teria começado a conjunção de equívocos. Segundo fontes da Aeronáutica, o controlador responsável pelo Legacy, ao deixar o posto, teria advertido o colega que o substituía sobre os problemas no transponder da aeronave. Mas o novo controlador acabou enganado por um detalhe técnico: nesse meio-tempo, os computadores do controle aéreo corrigiram automaticamente a indicação de altitude do avião, informando na tela os 36 000 pés previstos originalmente, e não os 37 000 pés em que voava de fato. Assim, o controlador que assumiu o monitoramento do avião teria julgado que, embora o transponder estivesse inoperante e não informasse a altitude exata do Legacy, ele deveria estar trafegando a 36 000 pés. Na verdade, estava a 37 000, na mesma altitude do Boeing.


Sebastião Moreira/AE
Trabalhos de resgate na selva e, abaixo, o enterro de uma das vítimas: algo mais falhou além do transponder
Pedro Vilela/O Tempo/AE

A falha seguinte da base de controle do tráfego aéreo em Brasília teria sido não alertar o Cindacta 4 – sediado em Manaus, de onde partiu o Boeing da Gol – de que havia um avião com transponder inoperante entrando em sua jurisdição. O manual de instruções dos controladores determina claramente em um de seus artigos que, quando uma aeronave apresenta problemas no transponder, os centros de controle situados em sua rota devem ser avisados prontamente. O Cindacta 1, por outro lado, sabia que havia um Boeing prestes a entrar em sua zona de controle de tráfego a 37 000 pés. Primeiro, porque o Boeing da Gol fazia um vôo de carreira, um percurso regular de Manaus ao Rio de Janeiro. Segundo, porque, minutos antes do desastre, um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que fazia a mesma rota do Legacy, mas a 34 000 pés, pediu autorização para subir a 38 000 pés. O controlador determinou ao piloto da FAB que esperasse o Boeing passar, pois seria arriscado subir e cruzar a rota do avião que vinha em sentido oposto.

Caso o Cindacta 4 fosse avisado dos problemas com o Legacy, o Boeing poderia ser desviado em sentido vertical ou horizontal – nesse caso, o avião faz uma manobra de 30 graus à esquerda ou à direita, contornando a aeronave em dificuldade. Esse desvio lateral é possível porque as aerovias, as pistas virtuais por onde trafegam os aviões, têm de 40 a 80 quilômetros de largura. "Em razão do mau funcionamento do transponder, o desvio lateral seria um procedimento adequado para aumentar a margem de segurança do Boeing", diz o coronel-aviador Luiz Fernando Póvoas da Silva, especialista em ciências aeroespaciais. O controle de tráfego aéreo afirma que por cinco vezes tentou contato por rádio com o Legacy para alertá-lo sobre o mau funcionamento do transponder, sem sucesso. Não se sabe por que não tentou o contato com o Legacy por meio de outras aeronaves próximas, um procedimento comum em situações como essa, inclusive recomendado pelo manual de instruções dos controladores de vôo.

Um levantamento feito pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), órgão ligado ao Ministério da Defesa, mostra que, dos 872 acidentes aéreos ocorridos na aviação civil brasileira entre 1994 e 2005, 45 aconteceram por um conjunto de falhas que incluíam o controle do tráfego aéreo. Atuar nessa atividade não é fácil. Uma pesquisa da International Stress Management Association do Brasil demonstra que o trabalho dos controladores aéreos é o segundo mais estressante que existe, superado apenas pelo dos policiais. Quando estão à frente da tela do radar, monitorando o movimento das aeronaves e dando instruções aos pilotos a todo momento, eles não podem se distrair um instante sequer. Num avião a 800 quilômetros por hora, poucos segundos podem fazer a diferença para evitar um acidente. A jornada diária dos controladores é de oito horas, mas, destas, duas devem ser obrigatoriamente dedicadas a pausas para descanso. Para se tornar um controlador, é preciso ter ensino médio e prestar concurso público. Caso seja aprovado, o candidato faz diversos cursos de especialização. O salário inicial é o de um sargento da Aeronáutica: em média, 1.600 reais.

Embora a investigação sobre o acidente com o Boeing da Gol esteja em boa parte concentrada nas falhas do transponder, o controle aéreo não depende apenas desse equipamento para garantir a segurança no ar. Os centros de controle contam também com os chamados radares primários, que mostram a posição do avião no espaço aéreo, mas não conseguem precisar sua altitude. No caso do desastre da Gol, mesmo com a falha do transponder, seria possível detectar o Legacy indo em direção ao Boeing, ainda que não se tivesse certeza da altura em que ele se encontrava. A versão atual do transponder começou a ser utilizada na aviação comercial quinze anos atrás. Antes disso, eram usadas versões rudimentares do aparelho. A primeira delas, inventada nos anos 60, apontava apenas a localização do avião no espaço aéreo, de forma um pouco mais precisa do que a dos radares primários. Na época, como havia menos vôos, os aviões eram menos velozes e voavam mais baixo, o aparelho dava conta do recado. O terceiro recurso empregado pelo controle de tráfego aéreo, além do transponder e do radar primário, é o rádio. No caso do vôo do Legacy, pelo que se sabe até agora, esse equipamento também funcionou de maneira precária. Mais uma prova de que os acidentes aéreos sempre acontecem por uma seqüência de erros – nunca por um só.

OS VIGIAS DA SELVA


Ricardo Benichio
Radares do Sivam: um deles viu o Boeing e o Legacy

O choque entre o Boeing da Gol e o jatinho Legacy levantou uma sombra sobre o sistema de radares na Amazônia. A dúvida era se havia falhas no Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), projeto concluído no ano passado e que custou aos cofres públicos 1,4 bilhão de dólares. Logo depois do acidente, pilotos e especialistas em aviação falaram em "zonas de sombra" inacessíveis aos radares da região. Essa hipótese pode ser descartada. Segundo uma fonte da Aeronáutica, os registros gravados no sistema do Sivam mostram que um radar primário captava o Boeing e o Legacy no momento do choque. Já nos radares secundários o Legacy não aparece porque seu transponder estava inoperante.

A região onde o Legacy e o Boeing da Gol se chocaram é monitorada pelo Cindacta 4, que usa os radares do projeto Sivam para controlar o tráfego aéreo. Embora as comunicações por rádio naquela área sejam problemáticas, ela está coberta por três radares de longo alcance, dois deles secundários – que dependem do transponder para detectar a aeronave – e um primário, que apenas identifica a presença do avião. Com esse sistema, torna-se praticamente impossível que se repitam acidentes como o do Boeing 737-200 da Varig que, em 1989, fez uma aterrissagem forçada na mata amazônica porque o piloto errou a rota e, como a região não era servida por radares, se perdeu. O Cindacta 4 conta com 25 radares de longo alcance, cada um com capacidade de captar objetos a até 360 quilômetros de distância. Outros cinco radares estão instalados em aviões que sobrevoam a Amazônia periodicamente. O sistema permite "enxergar" 5,2 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia, fiscalizando desde queimadas e extrações de madeira até o movimento de pequenas aeronaves usadas por traficantes de drogas entre as fronteiras.





Arquivo do blog