Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 14, 2006

O cigarro vai para a guilhotina


O governo francês proíbe fumar
em lugares públicos, reforçando
a luta européia contra o tabagismo


Antonio Ribeiro, de Paris

Owen Franken/The New York Times
Bar em Paris: a fumaça vai acabar, mas a cerveja morna continua



Nem na margem esquerda nem na margem direita do Rio Sena, mas na Ilha de Saint Louis, no centro de Paris, o bar-café Louis IX está envolto por uma densa nuvem de nicotina das 7 às 22 horas. O "botequim de esquina" é um microcosmo da França, país onde 20% da população fuma desde que o embaixador Jean Nicot apresentou a folha de tabaco dos ameríndios à corte de Luís XIV, o Rei Sol. Na semana passada, o queijeiro Bernard entrou no Louis IX, pediu uma taça de tinto e acendeu o cigarro enquanto folheava as páginas do vespertino Le Monde, cuja principal manchete anunciava uma nova lei, verdadeira guilhotina no hábito cotidiano de 12 milhões de fumantes franceses. Seguindo as pegadas das legislações de vizinhos europeus, a França proibiu que se fume em lugares públicos a partir de fevereiro de 2007. Na nação berço das liberdades individuais – e com governantes submissos à recorrente contestação popular –, a medida chegou acompanhada de justificativa robusta. O tabagismo mata, em média, treze franceses por dia. O primeiro-ministro Dominique de Villepin assinou a lei invocando o velho princípio das democracias liberais: o governo só deve interferir no comportamento do cidadão quando ele prejudica o outro. Cinco mil fumantes passivos morreram em 2005 por inalar as baforadas alheias – a maioria é de garçons e parceiros de fumantes. A sete meses das eleições presidenciais, o governo se empenha na tarefa hercúlea de tapar a cratera de 9,7 bilhões de euros da Previdência Social. A deficitária previdência francesa está assolada por fraudes, privilégios arcaicos, mas também pelo custo dos tratamentos de doenças ligadas ao tabagismo – 225 milhões de euros anuais, 75% da parte das taxas geradas pela venda de cigarros e destinadas à saúde pública. Oito em cada dez franceses aprovam a lei antifumo. Monsieur Bernard, por exemplo, fumante de olhos avermelhados, encara a mudança com bom humor. "Minhas chances de morrer sadio vão aumentar", diz, com a voz de barítono.

Embora seja um ataque frontal à importante cidadela do tabagismo europeu, a lei antifumo francesa não irá impor o rigor tal como se vê nos Estados Unidos, país com igual proporção de fumantes na população. Em São Francisco, na Califórnia, é proibido fumar até ao ar livre, em parques, praças e praias. A interdição na França abrange, num primeiro momento, empresas públicas e privadas, estabelecimentos de ensino, hospitais, trens e prisões – salvo dentro das celas individuais, cujo status equivale ao das moradias. O governo empurrou para 2008 o prazo para restaurantes, hotéis, bares, tabacarias, casas noturnas e cassinos se aprontarem conforme manda a legislação. Os "fumódromos", se equipados com sistema de ventilação independente e isolamento completo, estão autorizados, mas os clientes não devem esperar atendimento dentro deles. Os fumantes infratores pagarão multa de 75 euros e os proprietários, de 150 euros. Mais da metade das grandes empresas francesas perceberam a chegada da legislação antitabagista à Europa como águas que correm para o mar. Antes mesmo de a interdição vigorar na França, baniram os cinzeiros de suas dependências. É o caso da Renault: sua unidade de Sandouville deu o exemplo, e lá não se fuma desde 1998. "Infelizmente, perdemos alguns fumantes inveterados, mas ganhamos uma outra clientela, os sensíveis ao odor de tabaco", diz Jean-Marie Riberpray, diretor da famosa brasserie parisiense La Coupole, onde não se permite fumar desde julho passado. "A lei trouxe fluidez ao serviço. Acabou a espera do cliente por mesas em uma ou outra zona, agora só há área de não-fumantes", completa ele. O governo francês vai destinar 100 milhões de euros para ajudar os fumantes a livrar-se do vício. Um terço do preço dos tratamentos será reembolsado pelo Estado. Os departamentos de tabacologia dos hospitais – 500 consultas diárias – dobrarão sua capacidade de atendimento.

O princípio dura lex, sed lex nem sempre conquistou inteiramente o espírito dos habitantes da península itálica, aliás, nem só o deles. No que diz respeito à Lei Sirchia, houve grande surpresa. Há dezoito meses não se fuma em lugares públicos na Itália. Oito em cada dez italianos, segundo pesquisa do Instituto Doxa, querem que a situação continue exatamente assim. O ministro da Saúde, Francesco Storace, queria afrouxar a legislação para marcar seu distanciamento dos lobistas. Deu meia-volta. O texto da lei prevê multa de 275 euros para os infratores e, se o cigarro for aceso perto de uma gestante ou criança, o valor dobra. Mas a Itália não seria o que é sem sua capacidade criativa. Durante o inverno, a elegante discoteca Gilda, em Roma, empresta um poncho de lã com estampa publicitária ao cliente que deseja fumar na calçada. "Os hospitais italianos registraram queda de 11% nos infartos e nas mortes súbitas já a partir do quinto mês da aplicação da lei", diz Bertrand Dautzenberg, pneumologista-chefe do Hospital Pitié-Salpêtrière. Na Irlanda, a legislação fez baixar em 16% o consumo de cigarros. A Inglaterra vai adotar a lei contra o fumo no ano que vem, mas tolerará a fumaça nos pubs que não servem comida. Monsieur Bernard, o queijeiro, aposta que seria melhor banir não o cigarro, mas a culinária da ilha do outro lado do Canal da Mancha. Pouca gente sentiria falta.

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