Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, outubro 24, 2006

Míriam Leitão - Privatizar a floresta?


Panorama Econômico
O Globo
24/10/2006

Se todos os usuários de telefone celular que conseguiram acesso ao produto por causa da privatização votassem contra Lula, ele perderia a eleição. O debate da privatização foi o mais bobo da temporada eleitoral. Até porque o próprio governo Lula lançou mão da modalidade de transferência de patrimônio em regime de concessão para o setor privado e de um bem considerado sagrado no Brasil: a Floresta Amazônica.

A Amazônia, sim! Os políticos são tão desmemoriados que nem a oposição, encurralada, usou o recurso de mostrar a contradição do governo. Nos últimos anos, o governo Lula mandou ao Congresso, aprovou e sancionou um projeto que permite a exploração de terras da floresta em regime de concessão. Tudo se faz como na telefonia, em que o que as empresas têm não é a propriedade eterna, mas a concessão. O concessionário da floresta poderá explorá-la por 30 anos, renováveis por mais 30 anos. Fica sendo o dono temporário da terra pública e pode derrubar as árvores públicas e vendê-las para seu lucro privado dentro de um plano de manejo que pretende evitar a derrubada predatória.

A ministra Marina Silva é convincente quando explica que essa é a forma de ordenar a exploração que hoje é desordenada. Aqui nesta coluna, por diversas vezes, escrevi sobre os argumentos com os quais ela defendia a sua proposta da oposição ferrenha do P-SOL, de Heloísa Helena, e dos quadros da esquerda. O apoio do PSDB a ministra conseguiu fazendo um eficiente trabalho de convencimento e articulação. Apesar de votar a favor, o PSDB apresentou outra proposta no programa de governo do candidato Geraldo Alckmin: quer suspender toda e qualquer derrubada de árvores da Amazônia, sob o argumento de que o território já desmatado na floresta chega a quase três estados de São Paulo, o suficiente para qualquer projeto que se queira executar lá.

A proposta de Alckmin pode ser impossível. Se não fosse difícil, já teria sido executada. Foi esse o argumento que levou o Ministério do Meio Ambiente a apresentar uma proposta de distribuir parte da floresta à iniciativa privada em regime de concessão. O argumento é que essa era a forma de o governo ordenar o que estava sendo feito de forma predatória por grileiros e madeireiros. Mas o pragmatismo da proposta do Ministério do Meio Ambiente é totalmente contraditório com a afirmação ideológica que a campanha do governo Lula está apresentando por oportunismo eleitoral.

A exploração da floresta prevista na Lei de Concessões tem tudo o que foi desenvolvido nos processos de privatização do serviço público: tem plano de outorgas, como na telefonia, licitação pelo maior preço. Quem pagar mais poderá explorar os bens florestais daquela área, desde que obedecido o plano de manejo anualmente aprovado. Para controlar isso, foi criada uma agência independente: o Serviço Florestal, que será financiado por taxas pagas pelos concessionários. Ou seja, tudo igualzinho; até agência independente. Pode-se dizer que não há transferência de patrimônio, mas, sim, uma outorga temporária. Ora, em todos os serviços públicos, a concessão é temporária, porém renovável, como na proposta do PT.

No debate nos últimos anos no Congresso, desde que o PL foi enviado pelo governo em 2003, houve vários momentos curiosos. Na discussão este ano no Senado, o governo ficou contra uma proposta do senador José Agripino Maia que exigia algo super-razoável: que o plano de outorgas anual passasse pelo Senado para ser aprovado. Nos debates no dia da votação, houve ambientalista torcendo por ele com a convicção de que é a única saída para salvar a floresta; houve ONG estrangeira apoiando a ministra Marina Silva; houve ONG contra, achando que é o começo do fim da floresta. Houve ambientalista que foi para a votação com placa dizendo "Não à privatização da floresta". O senador Mozarildo Cavalcanti, do PTB, da bancada ruralista, protestou: "Vão alugar nossas florestas para conglomerados internacionais"; o senador Pedro Simon declarou seu amor à ministra, mas ficou contra: "Sou apaixonado pela Marina, é uma das pessoas mais puras que conheci, mas o projeto é uma monstruosidade, e recria as capitanias hereditárias." O senador tucano Arthur Virgílio apoiou o governo: "Eu prefiro alguma regulação que nenhuma."

No fim, o projeto foi aprovado, voltou à Câmara, foi novamente aprovado, e foi sancionado. Agora, está em fase de regulamentação. As ONGs, de novo, divididas. O tema é controverso, e tive oportunidade de conversar com a ministra Marina Silva sobre o assunto. Ela me explicou vários pontos nebulosos. Se a fiscalização não for bem feita, pode ser um desastre; se der certo, pode ser uma forma de ordenar o caos que está destruindo a floresta. Mas seja como for, a proposta aprovada é de usar um instrumento de mercado, através da licitação em regime de concessão de propriedade pública, o que, no idioma do PT, sempre se chamou privatização.

Pode ser a salvação da floresta, como a privatização da telefonia permitiu a expansão de um serviço que estava no meio de um salto tecnológico que o Estado não tinha condição de acompanhar. Mas o PT está diante de uma enorme contradição quando faz um ataque ideológico velho a um mecanismo ao qual ele mesmo está aderindo, e num patrimônio muito mais delicado.

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