Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 21, 2006

A maldição do cadastro


Não basta comprar. As lojas caras fazem
questão de ter a ficha completa das clientes,
tratadas como grandes e íntimas amigas


Sandra Brasil


Na entrada, tudo são flores. Ou intimidade forçada. "Qual é seu nome? O meu é Maria", sorri a vendedora. Em seguida vem o elogio a seu notável bom gosto. "Nossa, que bolsa linda", emenda ela, num esforço de sinceridade dolorosamente duvidosa. Consumada a compra, as gentilezas escasseiam e começa o tormento do interrogatório, que também atende por cadastro. Quantas vezes nos últimos tempos você, ao comprar algo, declinou nome, endereço, telefone (residencial, comercial e celular), CPF, RG, e-mail e data de nascimento ("Só dia e mês", esclarece caridosamente a guardiã do caixa)? Para consumidoras consistentes, aquelas que nunca voltam para casa com menos de cinco ou seis sacolinhas, a repetição do ritual pode ganhar contornos de tortura. A intimidade instantânea e a coleta desenfreada de dados pessoais do cliente são duas faces da mesma estratégia destinada a cativar e, no jargão varejista, "fidelizar" o comprador. Amaciado, elogiado, conhecido em detalhes, cercado por telefonemas ou mensagens por computador, cumprimentado no aniversário e avisado das novidades recém-chegadas, ele voltará sempre, para mais compras. Isso se não acabar furioso com tantas técnicas de venda.

Conhecimento de informações pessoais, intimidade e bajulação funcionam, claro – sobretudo para quem se lembra das insuportáveis vendedoras de butique que até um passado recente eram conhecidas pelo esnobismo –, desde que sejam bem administrados. Aí, justamente, ronda o perigo: em excesso, qualquer dos três ingredientes azeda a relação. Na teoria, sobram orientações aos profissionais para que se comportem com elegância e eficiência. "Hoje o vendedor precisa ter sensibilidade para entender o cliente e suas necessidades e ser perspicaz para oferecer algo que atenda a essas necessidades. E a venda não termina quando o cliente sai da loja. Muitas vezes, é aí que ela começa", diz Alexandra Sanglard, diretora de marketing do Grupo Friedman, que presta consultoria e treinamento em varejo. Segundo Alexandra, o "vendedor empurrador" de antigamente vem sendo substituído pelo "vendedor consultor", para quem "mais importante do que falar talvez seja fazer as perguntas certas e saber interpretar as respostas". Na prática, isso tudo pode acabar em aborrecimento. Preencher cadastro, por exemplo, é praticamente uma imposição na maioria das lojas. E não apenas nas compras com cheque, providência compreensível considerando-se os riscos de inadimplência – embora o índice seja comparativamente baixo no setor do consumo de ponta: nas 74 000 lojas dos 601 shopping centers do país, não ultrapassa 5%; enquanto na Grande São Paulo, em setembro, o porcentual geral foi de 35%. Mais do que para perseguir um eventual devedor, o cadastro serve para ter um retrato do consumidor. Com a ficha em mãos, o lojista pode controlar o que cada cliente consome, quanto gasta, quando costuma ir às compras. "Ao ser cadastrada, a pessoa passa a receber catálogos de lançamento de coleções e convites para inaugurações", defende Maximiliano Assumpção, supervisor de varejo da Forum. E telefonemas, muitos e nem sempre bem-vindos. A empresária Eliana Penna Moreira, dona da marca de roupas femininas Lita Mortari, redobrou a atenção de sua equipe depois de ser, ela mesma, vítima da maldição do cadastro. "Uma vendedora me ligou em plena hora do jantar. Pedi que retirassem meu nome do cadastro. É preciso muito cuidado para não invadir e perturbar a vida dos outros", diz Eliana. Mas ela desistiu de fichar suas clientes? Nem pensar. Nas lojas Lita Mortari, constam do banco de dados, além do nome da cliente, o do marido, o dos filhos e o do cachorro. "Tem cliente que trata o cachorro como filho. A gente registra o nome e pergunta como ele tem passado", justifica Eliana. O sistema de ligações freqüentes, segundo ela, também evita "o que já aconteceu no passado: a vendedora ligou para uma antiga cliente e foi informada pelo marido de que ela tinha morrido havia mais de três anos".

Em princípio, preencher cadastro é opcional. "Cabe ao vendedor sondar se o cliente quer ou não deixar seus dados, mas nem sempre ele sabe fazer isso", constata o consultor Carlos Ferreirinha, especialista em mercado de luxo, que considera "assustadora a proliferação de cadastros". De fato: o caixa pode não gostar, a vendedora pode torcer o nariz, mas ninguém é obrigado a prestar as informações pedidas. Ou quase ninguém – na joalheria Tiffany, cadastro é obrigatório, mesmo que se pague em dinheiro vivo. "É regra da sede, em Nova York. Não conseguimos processar nenhuma venda sem ele", diz o gerente-geral no Brasil, Renato Rabbat. "Tem gente que não quer aparecer e manda o motorista em seu lugar. Pegamos os dados dele." Muito mais do que telefonar ou manifestar elevadíssima amabilidade, cabe ao vendedor saber distinguir quem quer e quem não quer conversa. "Depois do cumprimento cordial, o vendedor deve deixar a pessoa à vontade na loja. O ideal é acompanhar o cliente a uma distância lateral mínima de 1,5 metro. Não pode ficar atrás como uma sombra, mentir nem ser chato", ensina a gaúcha Mirelle Zanotto, quinze anos de experiência no treinamento de vendedores. E se o cliente não quer dizer seu nome, não quer bater papo, já é tão prodigiosamente inteligente que sabe que se quiser pode experimentar uma peça de roupa ou um sapato e, no fim do processo, anseia apenas pelo rápido anonimato de uma compra efetuada por cartão de crédito? Ah, esse nem queira saber o que os vendedores dizem dele pelas costas.

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