Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 21, 2006

O último contato


Diálogo entre o Legacy e o controle aéreo
ajuda a entender por que o jatinho entrou
em rota de colisão com o Boeing


Rafael Corrêa e Rosana Zakabi


Nas investigações a respeito da queda do Boeing 737-800 da Gol, ocorrida em 29 de setembro, após o choque com um jatinho executivo Legacy, permanece o mistério sobre os motivos que levaram os dois aviões a trafegar na mesma altitude. Como as duas aeronaves entraram em rota de colisão a 37.000 pés sobre a selva amazônica? Por que o piloto do jatinho não desceu a 36.000 pés depois de passar por Brasília, em direção a Manaus, como previa seu plano de vôo original? As respostas podem estar no último diálogo travado pelo rádio entre a tripulação do Legacy e o centro de controle aéreo do Cindacta 1. O jatinho havia acabado de mudar de área no espaço aéreo, passando do setor de controle 4 para o setor 5, e encontrava-se a vinte minutos de Brasília. Seguindo procedimentos de rotina, o controlador do Cindacta 1 pediu ao piloto que trocasse a freqüência de rádio usada para sua comunicação. Seguiu-se o seguinte diálogo, em jargão aeronáutico:

Legacy – Brasília, N600 transfering.

Controlador – N600 squalk identification, maintaining flight level 370, under radar surveillance.

Legacy – Roger.

Traduzindo: na primeira frase, o Legacy (a sigla N600 refere-se ao prefixo do avião) confirma que mudou a freqüência de rádio. A seguir, o controlador pede ao piloto que identifique a aeronave por meio do transponder, aparelho que transmite os dados sobre altitude, velocidade e direção para o controle em terra. Na mesma frase, o controlador orienta o piloto a manter a altitude de 37.000 pés, sob o regime chamado em português de "vigilância radar". Ao responder "Roger", o piloto quis dizer que estava ciente das orientações.

Quando um avião voa sob o regime de "vigilância radar", segundo o manual dos controladores da Aeronáutica, o piloto fica dispensado de informar ao controle aéreo sua posição. Isso não é necessário porque, nesse caso, a aeronave é monitorada o tempo todo em terra. O piloto do Legacy, provavelmente, entendeu que não precisava entrar em contato com o controle aéreo ao passar por Brasília – se sua altitude fosse inadequada, ele seria alertado imediatamente pelo rádio. "O correto seria o controlador complementar sua frase, avisando que a altitude de 37.000 pés valia apenas até Brasília", diz o major-brigadeiro Renato Cláudio Costa Pereira, secretário-geral da Organização de Aviação Civil Internacional entre 1997 e 2003 e ex-presidente da Comissão Latino-Americana de Aviação Civil. "Ao que parece, houve um problema de comunicação entre o piloto e o controle", ele completa.

Depois que o Legacy passou por Brasília, o controle aéreo perdeu o contato por rádio com ele. O Cindacta 1 tentou cinco vezes falar com o piloto, sem sucesso. Há a hipótese de a tripulação do Legacy ter deixado o rádio em volume muito baixo. Por outro lado, segundo pilotos e controladores que conhecem os céus da Amazônia, a comunicação na área situada entre Brasília e Manaus apresenta falhas relativamente freqüentes. "Os aviões chegam a ficar sem contato com o controle por até quinze minutos, como acontece também entre Manaus e Caracas", diz o comandante da Varig Élnio Borges, diretor do Sindicato Nacional dos Aeronautas. Nessas áreas, há ocasiões em que os controladores precisam repetir várias vezes a mesma informação para que o piloto consiga entendê-la. "Nesse caso, uma alternativa é fazer uma 'ponte' com outros aviões, ou seja, tentar contato por rádio com aeronaves que sobrevoam a mesma área", diz Borges. Segundo os pilotos e controladores, as falhas de comunicação ocorrem porque as antenas são muito distantes umas das outras. "Para o sistema funcionar bem, como nas áreas próximas às grandes capitais, seria necessário instalar mais antenas na região amazônica", diz Borges.

A sucessão de erros que derrubou o Boeing prosseguiu quando, minutos depois de o Legacy passar por Brasília, seu transponder se tornou inoperante. A partir desse momento, o controle de terra não conseguiu mais enxergar com exatidão a que altitude voava o Legacy. O equívoco seguinte partiu dos computadores do Cindacta 1, que corrigiram automaticamente a indicação de altitude do avião no monitor do controlador, informando os 36.000 pés previstos no plano de vôo para aquele trecho. Os controladores, embora sem as informações do transponder, acreditaram nessa informação – na verdade, o Legacy permanecia a 37.000 pés, conforme autorização recebida antes de sobrevoar Brasília. Cerca de quarenta minutos depois, o jatinho se chocava com o Boeing. Segundo as primeiras informações da análise das caixas-pretas, o avião da Gol nem chegou a planar: caiu em parafuso, começou a se desintegrar a 6.000 pés e atingiu o solo, matando 154 pessoas. O Legacy, com a ponta da asa e parte da cauda avariadas, conseguiu pousar numa base da força aérea. A conclusão final sobre os erros que levaram à tragédia será útil para tornar o tráfego aéreo e os vôos ainda mais seguros no espaço aéreo brasileiro.
Jamil Bittar/Reuters

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