Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 08, 2006

João Ubaldo Ribeiro Pé na estrada


O segundo turno está aí, não adianta, que o assunto é eleição. Planejava reportar-me a um certo papo sociológico muito esclarecedor, sobre a famosa mulher-de-hoje-em-dia, vista pelos olhos dos coroas que ouço em um boteco ou outro do Leblon. Mas há que adiar-se o palpitante tema, em função do sério momento nacional em que se elegerá o próximo presidente da República. O atual pensava que esta semana estaria comemorando sua reeleição e até deu-se ao luxo ('deu-se ao luxo' é somente uma expressão consagrada que, neste caso, certamente será entendida ao contrário por grande número de leitores) de fazer gracinhas como beijar as mãos do deputado Jader Barbalho (aliás, segundo ouço, o deputado mais votado da história do Pará - parabéns, Pará!) negar-se ao debate ou duvidar um só instante de que estaria consagrado no primeiro turno.

Fui votar, como muitos outros que vi ou com quem conversei, com uma espécie de melancolia. Espécie não, melancolia mesmo. O dia que fazia aqui contribuía, uma chuvinha miúda e fria que parecia infiltrar-se nos ossos, o sol escondido, os galhos das árvores pendentes e tristonhos, nem um passarinho piando, as calçadas úmidas e escorregadias, as ruas penumbrosas e mudas, as pessoas encolhidas e enroladas em abrigos. Cheguei lá, mostrei meu título, fui para trás da 'cabine', peguei minha listinha e, com a sensação que tinha na infância quando me julgava vítima de injustiça, apertei os botões, vi as caras, confirmei, acabei. Seja o que Deus quiser, pensei, como também imagino que outros pensaram.

Infeliz estava, infeliz fiquei, se bem que ainda agradecendo à Providência podermos votar. Bem ao contrário do que se parece acreditar, votar não é sinônimo de democracia, até porque não acredito que a nossa seja das mais autênticas e, pelo contrário, me parece bastante safadinha e sonsa. Mas é alguma coisa. E nosso Congresso, nesta legislatura que agora se finda sem deixar saudade alguma, foi definido por muitos, inclusive parlamentares também, como o mais abominável de nossa História, mas continua verdade inescapável que ruim com ele, pior sem ele. Claro, já é tão viciado que talvez nunca venha a ser o que deveria ser, mas podemos ter sempre a esperança de que no futuro, atravesse alguns acessos de vergonha e conserte um pouco seus incontáveis defeitos de funcionamento.

Mas estava infeliz da mesma forma que o ambiente não parecia feliz. Que tinha feito eu? Tinha votado, claro, tinha dado meu sagrado (e último até a próxima eleição, porque, como sabemos, doravante não seremos nem ouvidos nem cheirados, não só para o que decidirem em nosso nome como para o que roubarem nosso e assim por diante) palpite sobre nosso destino coletivo nos próximos anos. Mas era o palpite que eu queria dar?

Não, não era, faltavam escolhas. E, em rigor, o eleitor não pode queixar-se simplesmente porque faltam escolhas. É bem comum que o candidato escolhido não seja o nosso ideal, mas o que esteja menos distante dele e isso é natural, não se faz uma eleição ao gosto de cada um. Só que, desta feita, achei que faltavam escolhas não só para mim mas para muita gente, talvez, quem sabe, a maioria. Poucas pessoas, muito poucas mesmo - na verdade, não me lembro de nenhuma agora - tinham o ar satisfeito de quem acabou de fazer o que tinha vontade, o que lhe contentava. A maior parte entrava e saía como quem cumpria uma rápida tarefa levemente incomodativa, que foi como eu acho que muitos de nós viram as eleições até agora.

Até porque sabemos mais ou menos o que vai acontecer daqui a pouco. O sistema de dois turnos (prometo que não vou tentar dar aula de ciência política, era só o que faltava para completar o seu domingo) foi em grande parte criado com a consciência de que promoveria uma aproximação de quase todos os partidos em torno do centro, ou o que lá seja isso hoje em dia. Em outras palavras, os concorrentes mais fortes ao poder procuram não radicalizar em demasia, porque, no segundo turno, podem precisar de eleitores que, se eles tivessem posições muito extremadas, jamais votariam neles. O que quer dizer que, em muitos mais casos do que a gente lembra, os candidatos têm propostas parecidas, embora freqüentemente fantasiadas até de seu oposto.

O jogo já começou, aliás. De repente, o PT não expulsou mais a senadora Heloísa Helena ou, se expulsou, está arrependido e era de brincadeirinha, ela não gostaria de uns dois ministérios no futuro Gabinete? Por outro lado, é bem fato, ou pelo menos li nos jornais, que o presidente demitiu o doutor Cristovam Buarque por telefone, método considerado não dos mais deferentes porque até um chefe dos boys, se tinha que demitir um, chamava o infeliz para uma conversinha particular, embora, pensando bem, com ministro de Lula possa ser diferente. De qualquer forma, ele agora sempre amou o dr. Cristovam com a mais pura das afeições fraternais e o que pretende o diletíssimo Cristovam fazer com seus preciosos votinhos?

E por aí irá, como já sabemos. O dr. Geraldo, por exemplo, não vai poder ver um nordestino sem lançar-se em seus braços entoando Asa Branca, vai prometer puxar quadrilha em Mossoró e pulará em cima de um trio elétrico em Salvador, no próximo carnaval. É isso mesmo, sabemos todos, faz parte. E as semelhanças às vezes se denunciam nos detalhes. Por exemplo, ambos, depois de anunciado o segundo turno, falaram em 'pôr o pé na estrada'. Saúdo-os pela nota otimista, já que, como todo mundo sabe, quase não tem estrada nenhuma, só tem buraco e assaltante. E, valha-nos Deus, espero que não se trate de um aviso para a gente se mandar enquanto é tempo.

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