Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 08, 2006

DANIEL PIZA

O espetáculo do simplismo

A divisão brasileira mais relevante é a mental. O que se viu na leitura dos resultados do primeiro turno das eleições foi um espetáculo de simplismo. Está certo que votar é um gesto binário - mesmo que você desista de escolher - e que a experiência manda optar pelo 'mal menor', mas no calor das campanhas o tom é o bem contra o mal, de acordo com o ponto de vista de cada um, e não só entre os políticos. Para dizer o mínimo, isso não explica muitas coisas - e esconde muitas outras. Nem tudo cabe num mapa de duas cores.

A sensação de que o Brasil se mostrou dividido nas urnas provocou duas conclusões preponderantes. Uma é a de que temos de um lado os ricos e do outro os pobres, algo como uma luta de classes regionalizada, e que se os pobres preferem Lula é porque ele fez políticas inéditas e sólidas que os beneficiam. Esse é um argumento muito comum entre petistas e populistas, que julgam que a função primordial do Estado é amparar os desamparados. A outra conclusão diz que os eleitores de Lula são os menos instruídos, logo são os que têm menor senso crítico e menor rigor ético. Costuma-se ouvir tal interpretação de quem pensa que amparar os desamparados é função que o Estado deve dispensar.

O que ocorre na verdade tem muito mais graduações e ironias. Primeiro, há muita gente da classe média urbana que votou em Lula. São pessoas que acreditam que seu governo reduziu a pobreza e é tão corrupto quanto os anteriores ou que isso não faz muita diferença; não são necessariamente ignorantes ou coniventes. Segundo, esses eleitores também escolheram Fernando Henrique para a reeleição em 1998, tanto que ele venceu no primeiro turno, pelo motivo semelhante de ter aumentado o poder aquisitivo das classes mais baixas. Então quando votavam nos tucanos não eram ignorantes e coniventes?

Essas mesmas regiões, tão 'civilizadas', elegeram - agora e antes - políticos como Paulo Maluf, para não falar de Russomanno, Clodovil, Enéas... Caso seguisse esse tipo de raciocínio em bloco, eu me perguntaria do que serve tanto estudo e tanta riqueza. Também é meia-verdade a noção de que o capitalismo das regiões sul e sudeste se fez apesar do Estado, e não graças a ele em boa parte. Muitos banqueiros e empresários fizeram fortuna com o impulso da máquina pública, com favores políticos das mais variadas espécies. São Paulo, além de contar com migrantes nordestinos como mão-de-obra, não é apenas um produto da livre iniciativa.

Nada disso, porém, não quer dizer que grande parte dos trunfos de Lula não venha da herança outrora 'maldita' de FHC - não só a estabilidade monetária e o salto das exportações, mas também a política social. Olhando por esse ângulo, também vale notar que Alckmin simplesmente é desconhecido da maioria do eleitorado de norte e nordeste. E, se tem um critério que todo eleitor brasileiro valoriza, da Ilha de Marajó à Lagoa dos Patos, é o conhecimento pessoal. Lula se alimenta desse discurso e do 'carisma' que vem de sua origem, não apenas da Bolsa Família (e muito menos do salário mínimo, porque nos grotões a economia é bastante informal), mas essa não é a única estratégia possível; caso fosse, oligarcas como Sarney e Collor - esses aliados de Lula - não continuariam recebendo votos como maná.

As nuances também não obscurecem a realidade brasileira, em que a desigualdade social coincide em alta freqüência com a desigualdade regional. O que é preciso levar para as regiões mais atrasadas é produtividade e liberdade - não só o choque de capitalismo que Mario Covas mencionava, mas o processo todo do capitalismo democrático, que preze nos mais diversos setores pela competição regrada, como acontece com a fruticultura na região de Petrolina. E o governo Lula, ineficiente na infra-estrutura, na pesquisa tecnológica e no comércio internacional, tem prejudicado bastante o agronegócio, o que explica parte da votação de Alckmin no sul e no centro-oeste.

Não é verdade que o Brasil esteja dividido entre 'os mano' e 'os doutô'. Ele é mais complexo do que supõem as fantasias da esquerda e da direita, assim chamadas. E tal bipartidarismo não consegue dar conta da grandeza do desafio adiante. Não à toa os discursos se parecem tanto. Não à toa se limitam ao dueto estabilidade monetária & bolsa social. Não à toa falam tão pouco de assuntos fundamentais como o saneamento, escasso no semi-árido como nas periferias urbanas, ou a abertura econômica. Pior: não à toa ambos parecem incapazes de realizar reformas que advogam, como a política e a tributária. A opção não é entre um Brasil e outro, mas entre ação e retórica.

RODAPÉ (1)

Num ano que não tem tido grandes lançamentos de literatura brasileira, alguns contistas são exceções pela seriedade e habilidade com que escrevem. É o caso de A Solidão do Diabo, de Paulo Bentancur (Bertrand Brasil). Há certa irregularidade entre os textos, mas seu estilo é sempre direto e conciso; não se perde em detalhes nem se concentra em efeitos, mesmo quando assume o tom alegórico como o da história que dá título ao volume e tem um desfecho formidável. Em um conto de apenas duas páginas, como Convocação, há uma força, uma consciência do drama humano, que outros escritores levariam romances inteiros para atingir. Também gostei dos livros de Rubens Figueiredo, Contos de Pedro (Companhia das Letras) e de Menalton Braff, A Coleira no Pescoço (Bertrand Brasil), que não têm a mesma temperatura emocional, mas são igualmente sustentados por uma imaginação precisa, fluente, que não nos deixa distrair. Todos fazem bons contos porque sabem como é difícil fazê-los.

RODAPÉ (2)

Outra movimentação interessante do mercado editorial brasileiro, que eu já havia citado, é a das traduções de clássicos feitas a partir dos originais. De Dostoiévski, por exemplo, acabam de ser lançados A Senhora (Editora 34, trad. Fátima Bianchi) e Recordações da Casa dos Mortos (Nova Alexandria, trad. Nicolau S. Peticov). Este, aliás, vem em capa dura, assim como Histórias Fantásticas, de Bioy Casares (Cosac Naify, trad. José Geraldo Couto), e os livros da mais nova editora do país, Alfaguara, como Retrato de um Artista quando Jovem, de Joyce, traduzido por Bernardina da Silveira Pinheiro.

RODAPÉ (3)

Completam-se 50 anos da morte do jornalista e crítico H.L. Mencken (1880-1956) e é impressionante como não param de surgir livros sobre ele ou reedições dos seus. Um destaque recentíssimo é o volume A Religious Orgy in Tennessee (Melville House), primeira coletânea completa e exclusiva de suas famosas reportagens no caso Scopes, de 1925, quando um professor foi julgado por ensinar evolucionismo em sala de aula. Não espere de Mencken o tipo moderno de reportagem, e sim uma série de artigos, editoriais, sobre o absurdo da situação. E espere o texto mais charmosamente límpido que você possa imaginar.

VALORES VIRTUAIS

Em qualquer lugar a liberdade da Internet é mal-entendida por grande número de usuários, que acham que podem fazer o que querem, incluindo os mais diversos tipos de crimes e desrespeitos. No Brasil isso acontece já num plano mais superficial. Em comunidades virtuais é que se vê como nunca a falta de boa educação no diálogo - o gosto pelo palpite em lugar da opinião, pelo excesso de adjetivos, pelo insulto e pela fofoca. As pessoas simplesmente não sabem que estão num espaço público, não privado. A cultura nacional perde ali até o véu de 'cordialidade' e revela todo seu destempero infantil.

POR QUE NÃO ME UFANO

Vejo gente se gabar de ter dito que Lula não seria reeleito. Mas quem disse que ele já não foi? O que mudou a história foi um fato que não estava previsto, o dossiê Vedoin, e não deixa de ser irônico que as maquinagens do próprio PT tenham tirado de Lula a chance de vencer no primeiro turno e se sentir ainda mais o salvador da pátria. O escândalo a uma quinzena da eleição trouxe à memória a sensação da crise do mensalão; a ausência de Lula no debate só reforçou a imagem de um governo que não se explica, que só arranja desculpa do tipo 'Fui traído' ou 'É conspiração das elites' ou nem isso. Mas Lula precisa apenas somar poucos votos para vencer no segundo turno. Alckmin, se quiser continuar crescendo, não pode deixar a indignação esfriar e, ao mesmo tempo, precisa mostrar melhor suas diferenças em outros temas.

Quanto às eleições para deputados e governadores, a sensação é a de um show de horror, como naqueles filmes em que os mortos-vivos vão tomando as ruas. Além de Maluf, Collor, Sarney e Enéas, há um bando de mensaleiros, há Palocci, há Jader Barbalho, há Clodovil. Poucos foram punidos, por maiores que tenham sido suas irregularidades. E mesmo medidas teoricamente saudáveis como a cláusula de barreiras, que deveria reduzir o número de partidos, são brasileiramente adaptadas - no caso, inaugurando temporada ainda mais precoce de infidelidade partidária, de alianças de conveniência, etc. Qualquer que seja o presidente a partir do ano que vem, ele vai se deparar com um Legislativo nada legal.

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