segundo Carlos Fuentes
De América a Zurique, o autor mexicano
expõe suas idéias em ordem alfabética
Jerônimo Teixeira
Tiziana/Fabi/AFP |
Carlos Fuentes: iniciação erótica internacional e crença mexicana na "sacralidade" |
Em férias em Zurique, Carlos Fuentes jantava com amigos em um restaurante quando reconheceu o cavalheiro que conversava com três senhoras em uma mesa próxima: Thomas Mann. O ano era 1950, e Fuentes, jovem estudante da Universidade de Genebra, ainda estava longe de ser o nome mais consagrado da ficção mexicana. Apesar de admirar fervorosamente o autor de A Montanha Mágica, não tinha credenciais nem ousadia para tentar uma aproximação. Esse encontro fortuito e frustrado é rememorado no último capítulo de Este É Meu Credo (tradução de Ebréia de Castro Alves; Rocco; 304 páginas; 44 reais), intitulado "Zurique". A cidade suíça e o escritor alemão – representantes das mais elevadas promessas européias de civilização e cultura – fecham emblematicamente um livro que começa com um texto dedicado à América Ibérica. Misto de ensaio literário e autobiografia, a obra foi organizada como uma enciclopédia pessoal, na qual as idéias do autor sobre a vida, a literatura, o mundo se apresentam em verbetes de A a Z. "A ordem alfabética simplificava minha tarefa. Mas tive dificuldades com o Z. Até que me lembrei do quase encontro com Mann em Zurique", disse Carlos Fuentes, em entrevista a VEJA, de Londres, onde vive parte do ano.
A letra Z ainda ganhou outro verbete: Zebra. A imagem aparentemente improvável do cavalo listrado de branco e preto serve de mote para Fuentes discorrer sobre as fantasias zoológicas – sereias, salamandras, peixes monstruosos que afundam navios – que infestavam as crônicas dos primeiros europeus a viajar pelo México. Desse bestiário colonial, Fuentes salta para a literatura fantástica, de Edgar Allan Poe a Jorge Luis Borges. Um dos grandes prazeres do livro está nesse andamento aparentemente descompromissado, em que um tema vai puxando o outro por livre associação. Mas Este É Meu Credo não é apenas uma miscelânea histórico-literária. A obra foi escrita a convite da editora francesa Grasset, para integrar uma série inaugurada nos anos 60 por François Mauriac com uma profissão de sua fé católica. A idéia é que cada escritor convidado resuma sua "visão de mundo". Este É Meu Credo cumpre a missão: é um belo retrato do autor de A Fronteira de Cristal e Gringo Velho. Os traços biográficos no abecedário são relativamente esparsos, mas estão entre algumas das páginas mais marcantes. Na letra S, por exemplo, o leitor depara com Sexo, saboroso texto no qual Fuentes rememora suas experiências de iniciação erótica com meninas americanas, colegas chilenas e prostitutas mexicanas (filho de diplomata, o escritor nasceu no Panamá e cruzou por vários países na infância e adolescência). Em outro ensaio, Fuentes faz um relato da agonia e morte do filho hemofílico.
A política ocupa uma porção considerável do livro. Como muitos escritores de sua geração, Fuentes, hoje com 77 anos, passou por seu período de encanto romântico com os revolucionários da Sierra Maestra, para mais tarde se desiludir com o autoritarismo que Fidel Castro imprimiu ao regime de Cuba. O autor reafirma sua crença no ideário da esquerda, mas já não exige a revolução pelas armas: prefere a social-democracia de modelo europeu. No texto Globalização, Fernando Henrique Cardoso – que alguns esquerdistas brasileiros têm na conta de uma besta-fera neoliberal – é citado como referência para o projeto de "globalizar a solidariedade".
O melhor do livro, porém, está nos ensaios sobre literatura. Fuentes até comete alguns erros, típicos de quem está citando livros de memória sem voltar à estante para consultá-los. Confunde o enredo de Sob os Olhos do Ocidente, de Joseph Conrad, com o de outra obra do mesmo autor, Coração das Trevas, e atribui a A Terra Desolada, de T.S. Eliot, versos que na verdade se encontram no poema Os Homens Ocos. Mas, quando passeia por clássicos como Hamlet, de William Shakespeare, e Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, ele se mostra à vontade, leitor sagaz que consegue estabelecer as relações mais insuspeitas entre esses livros fundamentais e a obra de sucessores como Balzac ou Julio Cortázar. Carlos Fuentes realmente não tinha necessidade de se apresentar a Thomas Mann: a leitura é a maior intimidade que se pode ter com um escritor.
A religião de quem não tem fé
De Londres, onde mora, o escritor mexicano
Carlos Fuentes falou a VEJA sobre alguns
temas de Este É Meu Credo
Roger Viollet/AFP |
William Shakespeare: compromisso com a imaginação |
A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA É NECESSÁRIA PARA UM ESCRITOR?
Não. Os regimes totalitários perseguem os artistas. Ditadores como Stalin e Hitler davam grande importância aos escritores. Nos regimes liberais, porém, os escritores já não são tão importantes. Como cidadãos, podemos participar na arena pública – ou não. Isso diz respeito à cidadania, não à criação literária. O escritor em geral é derrotado pela realidade. No melhor dos casos, cria uma realidade paralela. Hamlet não existia antes de Shakespeare, e Dom Quixote não existia antes de Cervantes. Hoje, já não podemos conceber o mundo sem eles. A responsabilidade básica do escritor diz respeito a duas coisas: a linguagem e a imaginação.
NO LIVRO, O SENHOR MOSTRA ADMIRAÇÃO POR ARTISTAS QUE TEM UMA PERSONALIDADE RELIGIOSA, MAS NÃO TEM FÉ. COMO ISSO É POSSÍVEL?
O cineasta sueco Ingmar Bergman era um ex-protestante, o espanhol Luis Buñuel era um católico relapso, e o escritor francês Albert Camus era ateu. Mas, na obra deles, há uma tensão que se deve ao elemento religioso. Buñuel tinha uma frase ótima para expressar isso: "Graças a Deus, sou ateu".
O SENHOR SE ENQUADRARIA NESSA CATEGORIA DE HOMENS RELIGIOSOS QUE NÃO TEM FÉ?
Sou um mexicano. Pertenço a uma cultura de sacralidade. Não é necessariamente católica, pois mesmo antes da chegada dos espanhóis já existia, entre os povos nativos, esse sentimento da sacralidade do mundo. Nos meus livros, tento expressar a idéia de que algumas coisas são sagradas, mesmo em um mundo profano. O amor, a liberdade são sagrados – mas não religiosos.
O SENHOR REAFIRMA SUA FÉ NA ESQUERDA. QUAL SUA AVALIAÇÃO DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA HOJE?
Não se pode falar em uma esquerda monolítica na América Latina. Há várias esquerdas hoje, e vários líderes de esquerda. Exceto Hugo Chávez. Ele é um fascista que se disfarça de esquerdista.
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