Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 21, 2006

Este É Meu Credo, de Carlos Fuentes

Deus e o mundo
segundo Carlos Fuentes

De América a Zurique, o autor mexicano
expõe suas idéias em ordem alfabética


Jerônimo Teixeira


Tiziana/Fabi/AFP
Carlos Fuentes: iniciação erótica internacional e crença mexicana na "sacralidade"


Em férias em Zurique, Carlos Fuentes jantava com amigos em um restaurante quando reconheceu o cavalheiro que conversava com três senhoras em uma mesa próxima: Thomas Mann. O ano era 1950, e Fuentes, jovem estudante da Universidade de Genebra, ainda estava longe de ser o nome mais consagrado da ficção mexicana. Apesar de admirar fervorosamente o autor de A Montanha Mágica, não tinha credenciais nem ousadia para tentar uma aproximação. Esse encontro fortuito e frustrado é rememorado no último capítulo de Este É Meu Credo (tradução de Ebréia de Castro Alves; Rocco; 304 páginas; 44 reais), intitulado "Zurique". A cidade suíça e o escritor alemão – representantes das mais elevadas promessas européias de civilização e cultura – fecham emblematicamente um livro que começa com um texto dedicado à América Ibérica. Misto de ensaio literário e autobiografia, a obra foi organizada como uma enciclopédia pessoal, na qual as idéias do autor sobre a vida, a literatura, o mundo se apresentam em verbetes de A a Z. "A ordem alfabética simplificava minha tarefa. Mas tive dificuldades com o Z. Até que me lembrei do quase encontro com Mann em Zurique", disse Carlos Fuentes, em entrevista a VEJA, de Londres, onde vive parte do ano.

A letra Z ainda ganhou outro verbete: Zebra. A imagem aparentemente improvável do cavalo listrado de branco e preto serve de mote para Fuentes discorrer sobre as fantasias zoológicas – sereias, salamandras, peixes monstruosos que afundam navios – que infestavam as crônicas dos primeiros europeus a viajar pelo México. Desse bestiário colonial, Fuentes salta para a literatura fantástica, de Edgar Allan Poe a Jorge Luis Borges. Um dos grandes prazeres do livro está nesse andamento aparentemente descompromissado, em que um tema vai puxando o outro por livre associação. Mas Este É Meu Credo não é apenas uma miscelânea histórico-literária. A obra foi escrita a convite da editora francesa Grasset, para integrar uma série inaugurada nos anos 60 por François Mauriac com uma profissão de sua fé católica. A idéia é que cada escritor convidado resuma sua "visão de mundo". Este É Meu Credo cumpre a missão: é um belo retrato do autor de A Fronteira de Cristal e Gringo Velho. Os traços biográficos no abecedário são relativamente esparsos, mas estão entre algumas das páginas mais marcantes. Na letra S, por exemplo, o leitor depara com Sexo, saboroso texto no qual Fuentes rememora suas experiências de iniciação erótica com meninas americanas, colegas chilenas e prostitutas mexicanas (filho de diplomata, o escritor nasceu no Panamá e cruzou por vários países na infância e adolescência). Em outro ensaio, Fuentes faz um relato da agonia e morte do filho hemofílico.

A política ocupa uma porção considerável do livro. Como muitos escritores de sua geração, Fuentes, hoje com 77 anos, passou por seu período de encanto romântico com os revolucionários da Sierra Maestra, para mais tarde se desiludir com o autoritarismo que Fidel Castro imprimiu ao regime de Cuba. O autor reafirma sua crença no ideário da esquerda, mas já não exige a revolução pelas armas: prefere a social-democracia de modelo europeu. No texto Globalização, Fernando Henrique Cardoso – que alguns esquerdistas brasileiros têm na conta de uma besta-fera neoliberal – é citado como referência para o projeto de "globalizar a solidariedade".

O melhor do livro, porém, está nos ensaios sobre literatura. Fuentes até comete alguns erros, típicos de quem está citando livros de memória sem voltar à estante para consultá-los. Confunde o enredo de Sob os Olhos do Ocidente, de Joseph Conrad, com o de outra obra do mesmo autor, Coração das Trevas, e atribui a A Terra Desolada, de T.S. Eliot, versos que na verdade se encontram no poema Os Homens Ocos. Mas, quando passeia por clássicos como Hamlet, de William Shakespeare, e Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, ele se mostra à vontade, leitor sagaz que consegue estabelecer as relações mais insuspeitas entre esses livros fundamentais e a obra de sucessores como Balzac ou Julio Cortázar. Carlos Fuentes realmente não tinha necessidade de se apresentar a Thomas Mann: a leitura é a maior intimidade que se pode ter com um escritor.

A religião de quem não tem fé

De Londres, onde mora, o escritor mexicano
Carlos Fuentes falou a
VEJA sobre alguns
temas de
Este É Meu Credo


Roger Viollet/AFP
William Shakespeare: compromisso com a imaginação


A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA É NECESSÁRIA PARA UM ESCRITOR?
Não. Os regimes totalitários perseguem os artistas. Ditadores como Stalin e Hitler davam grande importância aos escritores. Nos regimes liberais, porém, os escritores já não são tão importantes. Como cidadãos, podemos participar na arena pública – ou não. Isso diz respeito à cidadania, não à criação literária. O escritor em geral é derrotado pela realidade. No melhor dos casos, cria uma realidade paralela. Hamlet não existia antes de Shakespeare, e Dom Quixote não existia antes de Cervantes. Hoje, já não podemos conceber o mundo sem eles. A responsabilidade básica do escritor diz respeito a duas coisas: a linguagem e a imaginação.

NO LIVRO, O SENHOR MOSTRA ADMIRAÇÃO POR ARTISTAS QUE TEM UMA PERSONALIDADE RELIGIOSA, MAS NÃO TEM FÉ. COMO ISSO É POSSÍVEL?
O cineasta sueco Ingmar Bergman era um ex-protestante, o espanhol Luis Buñuel era um católico relapso, e o escritor francês Albert Camus era ateu. Mas, na obra deles, há uma tensão que se deve ao elemento religioso. Buñuel tinha uma frase ótima para expressar isso: "Graças a Deus, sou ateu".

O SENHOR SE ENQUADRARIA NESSA CATEGORIA DE HOMENS RELIGIOSOS QUE NÃO TEM FÉ?
Sou um mexicano. Pertenço a uma cultura de sacralidade. Não é necessariamente católica, pois mesmo antes da chegada dos espanhóis já existia, entre os povos nativos, esse sentimento da sacralidade do mundo. Nos meus livros, tento expressar a idéia de que algumas coisas são sagradas, mesmo em um mundo profano. O amor, a liberdade são sagrados – mas não religiosos.

O SENHOR REAFIRMA SUA FÉ NA ESQUERDA. QUAL SUA AVALIAÇÃO DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA HOJE?
Não se pode falar em uma esquerda monolítica na América Latina. Há várias esquerdas hoje, e vários líderes de esquerda. Exceto Hugo Chávez. Ele é um fascista que se disfarça de esquerdista.

Livros
25 de outubro de 2006

Leia trecho do livro Este é Meu Credo, de Carlos Fuentes

AMÉRICA IBÉRICA

Acredito na América Ibérica. Para mim, o Atlântico não é um abismo, mas uma ponte. As águas do Mediterrâneo fluem do Bósforo e da Andaluzia às Antilhas e ao Golfo do México. Mar de encontros. O primeiro foi um choque. A América desejada foi a América destruída. O sonho europeu de uma nova Idade do Ouro em um Novo Mundo pereceu na mina, na fazenda, no barco escravagista. Grandes civilizações foram derrubadas. A conquista da América foi uma catástrofe. Mas uma catástrofe, segundo María Zambrano, só é catatrófica se dela não nasce nada que a redima. E da catástrofe da conquista, nascemos todos nós. Somos, majoritariamente, mestiços, filhos do encontro. Falamos, majoritariamente, castelhano e português. E mesmo quando somos ateus, somos católicos. Mas nosso cristianismo é sincrético. Carrega, transforma e deforma as grandes heranças das culturas indígenas construtoras de Chichén-Itzá, Teotihuacan, Mayapán e Machu Picchu. Sociedades indígenas de regimes políticos autoritários, quase sempre cruéis, exploradores... e isolados. Mas no seio de cada uma se livra o combate entre a escuridão do sacrifício e a guerra (Huitzilopochtli) e o princípio da luz e da criação (Quetzalcoatl). Quem teria vencido: o filho da Coatlicue ou o filho da Serpente Emplumada? Nunca saberemos. A cultura indígena da América é uma cultura interrompida, consciente de sua fragilidade: "Em vão viemos, passamos pela terra? Que haja menos flores, ao menos cantos!" e condenada a sucumbir de pura surpresa. As profecias se cumprem. O outro chega. Não estamos sozinhos no mundo. Da conquista da América não nasceu uma ordem justa, embora a conquista da América tenha originado a luta universal pela justiça. A Espanha é a única potência colonial que debate consigo mesma pela justiça ou a injustiça de seus atos. Desse debate, iniciado pelos frades Antonio de Montesinos e Bartolomé de las Casas, nascerá o conceito dos direitos humanos como direitos universais: Vitoria e Suárez. E da mestiçagem racial e cultural nascerá uma cultura religiosa sincrética (os ídolos atrás dos altares, Santa Maria mãe de Deus e dos índios; Jesus Cristo, o deus espantoso que em vez de exigir sacrifício, sacrifica a si mesmo). Cultura o assombro, da ironia, da paciência, da memória e do rancor às vezes, da humildade mais generosa outras vezes, da criatividade mais novidadeira e imperiosa sempre: Kondori, o índio arquiteto do peru; Aleijadinho, o escultor mulato do Brasil; Sóror Juana, a poeta mestiça do México. Se o barroco é "horror ao vácuo", na América Ibérica todos os vácuos foram preenchidos. Foi diferente do barroco europeu, sublimação sensual da contra-reforma. O barroco americano é a arte da contraconquista. Supre os abismos da utopia do Novo Mundo.

As nacionalidades ibero-americanas foram elaboradas com e contra o regime colonial. O rei da Espanha estava muito distante e nunca visitou seus vastos domínios americanos (Juan Carlos I foi o primeiro monarca espanhol a vir à América). As leis das Índias estenderam proteção aos povos autóctones. Mas a distância e o isolamento propiciaram os caciques rurais, os grandes latifúndios, a exploração do trabalho. No Caribe e no Brasil, a população indígena dizimada foi substituída pelos negros escravos. Os Habsburgo, distantes, permitiam que agisse em favor das elites crioulas. Os Bourbons, reformadores demasiadamente próximos e condescendentes, obrigaram a ações a favor da metrópole espanhola. A elite crioula se revoltou, simultaneamente, em 1810, de Buenos Aires e Santiago do Chile a Caracas e México. Tivemos heróis: Bolívar, Hidalgo, San Martín. Tivemos estátuas. Era a hora da independência, dos grandes sonhos e das constituições (Victor Hugo) "feitas para os anjos, não para os homens". O teto protetor da monarquia, benévola com os Áustrias, intrometida com os Bourbons, entrou em colapso. Sob os infortúnios, criamos democracias instantâneas, repúblicas nescafé, desesperadamente confiadas na imitação extralógica da França, Inglaterra e dos Estados Unidos, fatalmente condenadas a aprofundar as diferenças entre o país real e o país legal. O resultado foi o movimento pendular entre a ditadura e a anarquia. Época dos tiranos nacionais e locais. Entre a civilização e a bárbarie, determinou o argentino Domingo Sarmiento em seu livro sobre o mais temível tirano gaúcho, Facundo Quiroga, capaz de rachar a cabeça do próprio filho com uma machadada.

Construir uma semelhança de Estado nacional fundamentado no direito foi a tarefa de homens de Estado tão discutíveis e discutidos até hoje como Diego Portales no Chile, o próprio Sarmento e Bartolemé Mitre na Argentina e Benito Juárez no México. Juárez é salvo e suas características de identidade são glorificadas: índio zapoteca, analfabeto até os 12anos, advogado liberal, presidente reformista, patriota que enfrentou a invasão francesa e a coroa de sombras de Maximiliano da Áustria e Carlota da Bélgica. Mas a tarefa continuava inacabada. As reformas liberais, o Estado de direito consagravam o desenvolvimento mas não a justiça, e a aprofundavam a desigualdade. Porfirio Díaz sucedeu a Juárez, com trinta anos de paz sem liberdade. A Argentina criou uma base de prosperidade oligárquica em razão de status de dependência comercial da Europa: a Argentina, de fato, foi uma colônia britânica até 1940. O Chile conseguiu maiores avanços na luta cívica, operária e política. A Colômbia se iludiu ao acreditar ser a Atenas da América: liberias e conservadores se alternaram no poder, sem o poder de mudar em nada, semearam os horrores da guerra perpétua. E em 1898, os últimos vestígios da colônia espanhola – Porto Rico e Cuba – passaram a ser colônias dos Esatdos Unidos, o "quintal" de Washington. A derrota simultânea da Espanha e da América espanhola em 1898 e nas águas do Caribe deveria Ter-nos alertado para os perigos do rancor e do isolamento. Deveria ter aberto nossos olhos para essa "comunidade de nações hispânicas", o Commonwealth hispano-americano que o ministro Aranda propôs a Carlos III, para evitar o desmembramento hispânico no século XVIII. O que abriu caminho durante o século XX foi, de um lado, a consciência da continuidade cultural da América Ibérica. A Revolução Mexicana revelou a totalidade do passado do país, oculto pela fachada de cartolina do progresso do período de Porfirio Díaz. E o passado do país trnou-se seu presente: sua cultura. Em vez de uma imitação superficial da moda européia ("Guatemala, Paris da América Central", dizia um arco triunfal na entrada da cidade), as catástrofes internas (ditaduras, injustiças, riqueza latente, prosperidade frágil, pobreza persistente) e as externas (as duas guerras mundiais, o Holocausto e o Gulag, a percepção latino-americana de que a violência não era privilégio nosso, mas condição universal da história, da qual não escapava a Alemanha de Bach e de Goethe) deram vida a uma cultura arraigada à tradição. Tradição afro-americana de Akejo Carpentier e Wilfredo Lam, de Edouard Glissant e de Jorge Amado. Tradição indo-americana de Miguel Ángel Asturias, de Rufino Tamayo e de José María Arguedas. Tradiçaõ euro-americana de Jorge Luis Borges, Alfonso Reyes e Roberto da Matta. E unindo raiz e firmamento, os dois maiores poetas do século XX latino-americano: o chileno Pablo Neruda e o peruano César Vallejo, épico aquele, trágico este. A tradição nutre a criação, a criação nutre a tradição: música de Carlos Chávez e de Heitor Villa-Lobos, arquitetura de Oscar Niemeyer e de Luis Barragán, pintura de Orozco, Frida Kahlo, Portinari, Soto, cinema de Emilio Fernández e Nelson Pereira dos Santos, mas também ciência de Ignácio Chávez e Bernardo Houssay e também arte popular alimentada de "arte cultura" e esta, da fala de Cantinflas no México, de Sandrini na Argentina e de Verdejo no Chile, dos tangos Discépolo e dos boleros de Lara, e das vozes de Gardel, Lucha Reyes e Celia Cruz.

Talvez fosse necessária essa assimilação indo-afro-ibero-americana para estender a ponte sobre o Atlântico, encher o abismo dos rancores e das quarelas e reconhecer-nos em nossa outra metade, que é a Espanha. Mas a Espanha, para a América Ibérica, é algo mais que a Espanha. É o Mediterrâneo renascendo no Caribe, no Golfo, no Pacífico e no Atlântico americanos. A Espanha é a filosofia grega e o direito romano. A Espanha é a Espanha das três culturas – cristã, árabe e judaica – encontrando-se na corte de Afonso, o Sábio e desastrosamente expulsas pelo dogmatismo cego dos reis católicos Isabel e Fernando. A Espanha é a grande lição de uma cultura fortalecida pela adversidade. É a Espanha do judeu convertido Fernando de Rojas e do primeiro grande romance urbano, A Celestina, derrubando as muralhas da cidade medieval para que circulem livremente o sexo, o dinheiro, o amor e a morte. É a Espanha de Cervantes e de Velázquez, os dois grandes criadores – o Quixote, As meninas – de uma realidade baseada na imaginação. A realidade como criação da imaginação, não como reflexo servil da convenção: Quevedo e Gôngora. A Espanha de Goya, a crítica mais rigorosa, aguda e alerta contra as beatidudes da modernidade: cuidado, o sonho da razão produz monstros; muito cuidado, Saturno devora os próprios filhos...

A Espanha era algo mais do que a "lenda negra" inventada pela "pérfida Albeão" (dois tópicos concordantes e inimigos ao mesmo tempo). Era a Espanha dos primeiros parlamentos europeus (Leon, 1188, o primeiro da Europa; Catalunha, 1217; Castela, 1265), das liberdades municipais e das comunidades rebeldes esmagadas pelo absolutismo real em 1521 (caem as bandeiras comunitárias de Castila em Villarlar, caem os pendões de Cuauhtémoc em Tenochtitlán). Era a Espanha da Constituição Liberal de Cádiz em 1812, a Espanha da República menina (María Zambrano), assassinada pelo fascismo em 1939. Era a Espanha peregrina que se reanimou e às vezes fundou a modernidade cultural da Espanha no exílio. Era a Espanha da resistência interna a Franco. Era a Espanha que teve o imenso talento político de unir forças, conciliar ideologias e consolidar uma exemplar democracia européia nos últimos trinta anos do século XX.

É a Espanha que, com os hispano-americanos do Novo Mundo, fala a Segunda língua ocidental, e a quarta língua mundial, o castelhano, idioma de 500 milhões de homens e mulheres. As diferenças estão aí. Os nacionalismos e os regionalismos criam sombras aqui, dão luzes acolá, estabelecem matizes em todas as partes. Mas a língua une. Trinta milhões de norte-americanos falam espanhol.

Somos o Território da Mancha. Manchados, impuros, mestiços, abertos por pura força à confiança em nossa contribuição ao mundo. Somos os escudeiros de Dom Quixote.

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