Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 21, 2006

A briga peronista pelo corpo de Perón

Os três enterros de Perón

Na Argentina, onde os mortos ainda são
os melhores cabos eleitorais, peronistas
brigam no novo funeral do velho caudilho


Duda Teixeira

AP
Entre mortos e feridos: acima, Evita e Perón, em 1950. Confronto entre peronistas no novo funeral de Perón
Natacha Pisarenko/AP

Como todos os mortos, Juan Domingo Perón merecia descansar em paz. Mas os mortos nunca descansam para sempre na Argentina. Na semana passada, depois de ter sido exumado para um teste de paternidade, o corpo embalsamado do velho caudilho morto em 1974 foi transferido para um jazigo de mármore em um mausoléu construído numa chácara na província de San Vicente, onde o presidente costumava passar os fins de semana nos anos 40 e 50. A caravana de 50 quilômetros que acompanhou o caixão até o novo memorial de 1,3 milhão de dólares acabou em uma briga de pau, pedra e tiros entre as várias vertentes que reivindicam para si o legado peronista, resultando em cinqüenta feridos. Brigaram por questões relevantes na liturgia peronista: qual deles ocuparia um espaço melhor perto do caixão ou teria precedência na hora dos discursos.

Foi o terceiro enterro de Perón, presidente por duas vezes (1946-1955 e 1973-1974). Seu corpo passou os dois primeiros anos na residência oficial de Olivos. Dali foi levado para o cemitério La Chacarita pelos militares que depuseram sua viúva e sucessora, María Estela Martinez, a Isabelita, em 1976. O túmulo foi profanado em 1987 por pessoas nunca identificadas. Levaram a espada, o quepe e as mãos do presidente. O resgate de 8 milhões de dólares nunca foi pago, e as mãos continuam desaparecidas até hoje. Tanta obsessão pelos restos do eterno pai dos pobres argentinos tem uma explicação política. "Há uma crença de que o detentor dos corpos de Juan e Eva Perón será, por extensão, dono da tradição peronista", disse a VEJA o historiador argentino Luis Alberto Romero, professor da Universidade de Buenos Aires.

Marcos Brindicci/Reuters
O novo mausoléu de Perón: 1,3 milhão de dólares coletados entre os peronistas

O corpo de Eva Perón, vitimada pelo câncer em 1952, percorreu o mundo numa incrível saga, que o escritor Tomás Eloy Martínez transformou em romance. Iniciado em 1946, o primeiro governo de Perón terminou com um golpe de Estado em 1955. Logo depois, militares roubaram o corpo embalsamado de Evita e o enterraram secretamente na Europa, para evitar que seu túmulo se tornasse um santuário de culto à "mãe dos pobres". Evita retornou à Argentina somente em 1974, pouco depois da morte de Perón. Só então os montoneros, braço armado da esquerda peronista, entregaram os restos do presidente Pedro Eugênio Aramburú, um general com participação no golpe de 1955, roubado por eles como forma de pressionar pelo retorno de Perón do exílio. A violência da semana passada, em San Vicente, teve como pano de fundo, mais uma vez, a crença na força simbólica dos cadáveres dos Perón. "É assustador, mas os mortos estão voltando a ter uma influência na política argentina", disse a VEJA a escritora argentina Beatriz Sarlo, de Buenos Aires.

O peronismo é a maior força política da Argentina, mas está de tal forma pulverizado que perdeu identidade própria. A herança populista e autoritária de Perón serve para qualquer propósito político, da extrema direita à extrema esquerda. Todos queriam tirar uma lasquinha dos dividendos políticos da inauguração do mausoléu. O presidente Néstor Kirchner planejava discursar na ocasião – e até conseguiu vetar a participação dos ex-presidentes Carlos Menem e Eduardo Duhalde, seus adversários no peronismo. Mas Kirchner desistiu quando se tornou claro que o fantasma do massacre de Ezeiza pairava sobre San Vicente. Em 1973, quando Perón voltou ao país depois de dezoito anos de exílio para ser novamente eleito presidente, a disputa por posições no palco armado para recebê-lo nas imediações do aeroporto de Ezeiza degenerou em horas de pancadaria, com duas dezenas de mortos e mais de 300 feridos.

AP
Kirchner com a primeira-dama, Cristina: disputa pela herança política de Perón

A inauguração do mausoléu de Perón era anunciada como o maior evento político do ano e um bom palanque para qualquer homem público. Já está provado que, na Argentina, mortos podem ser bons cabos eleitorais. Em 1991, o presidente Menem mandou retirar do cemitério da Recoleta, um dos mais movimentados pontos turísticos da capital argentina, os restos mortais de Juan Bautista Alberdi, um intelectual da província de Tucumán, e enviou-os para a terra natal às vésperas das eleições para governador. O objetivo era favorecer um candidato menemista, que de fato acabou vencendo.

Com 70% de aprovação, Kirchner teoricamente não precisaria apelar aos mortos para garantir a reeleição no próximo ano. A economia cresceu à taxa anual de 9% nos últimos três anos, apesar de o governo ter dificuldade em manter a inflação abaixo dos dois dígitos ao ano. A estratégia de Kirchner tem sido o congelamento de preços, obtido com a ajuda dos sindicatos, que fazem piquete na porta dos supermercados, mas é duvidoso que tenha sucesso a médio prazo. O presidente não deixou de lado alguns legados peronistas, como a ligação promíscua com os sindicatos, o discurso populista e a verve autoritária. E, não menos característico, a insistência em recorrer ao passado para se promover. Em 2005, Kirchner conseguiu anular a lei de anistia aos militares que mataram e torturaram durante a última ditadura, entre 1976 e 1983. A ironia trágica é que o passado argentino é rodeado de memórias ingratas. O golpe militar de 1976 teve origem no mesmo fator que levou à pancadaria da última semana no mausoléu de Perón: as divisões internas do peronismo. Quando o ditador morreu, o poder foi para as mãos de sua terceira esposa, Isabelita, e seu movimento foi estraçalhado por disputas. Os montoneros atacaram um quartel, matando 28 pessoas, e seqüestraram um Boeing 737 para fugir. A violência e o caos econômico acabaram criando uma situação favorável ao golpe militar. Repetir o passado não parece o melhor negócio para a Argentina.

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