e ineficiente
O governo federal gasta muito e mal.
Os presidenciáveis deveriam falar em
cortar, cortar, cortar e cortar
Lucila Soares e Ronaldo França
Durante muitos anos, a imagem utilizada para simbolizar o tamanho e a falta de mobilidade do Estado brasileiro foi a de um transatlântico. Dizia-se isso a propósito da dificuldade para fazer qualquer mudança de rumo. Apesar das reformas levadas à frente na década de 1990, quando tiveram início as privatizações e o enxugamento da máquina pública, e do bem-sucedido esforço de estabilização da economia, esse navio ainda não alcançou o rumo desejado. O Estado brasileiro continua sendo gigantesco, mal gerido e perdulário. É essa realidade que está sintetizada no quadro ao lado, em dez exemplos de mau uso do dinheiro público. As quantias envolvidas não são astronômicas nem estão relacionadas a escândalos como os que têm sido notícia com freqüência no Brasil. No conjunto, demonstram que é inaceitável a irresponsabilidade com que a discussão sobre o papel do Estado tem sido tratada pelos dois candidatos à Presidência. De um lado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva insiste em que é desnecessário cortar gastos e traz de volta a surrada discussão sobre as privatizações, no intuito de reconquistar uma parcela do eleitorado que ainda se deixa seduzir pelo discurso nacionalista. Geraldo Alckmin, por sua vez, limita-se a uma defesa envergonhada dos dois temas. Chegou a se vestir de garoto-propaganda das estatais brasileiras para tentar se contrapor à cantilena petista, que o apresenta como um candidato que vai "entregar" as estatais. Definitivamente, Alckmin não contribuiu para colocar o assunto na latitude correta.
Os dois candidatos sabem muito bem que o governo gasta mal o dinheiro que arrecada com impostos cada vez mais altos. O mau uso dos recursos públicos não se deve apenas à corrupção. O que mais chama atenção na ação do Estado brasileiro é a ineficiência na utilização dos recursos. Procedimentos básicos em qualquer empresa privada, como dimensionar a demanda por um determinado serviço, estabelecer metas e cronogramas de execução e acompanhar resultados, passam ao largo das preocupações da administração pública. "O contribuinte fica prejudicado pela não conclusão de uma obra ou pela má qualidade do serviço, independentemente de o motivo ser roubo ou ineficiência. A diferença é que no Brasil não há como punir a incompetência", diz Lucas Furtado, procurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, órgão que realizou em 2005 mais de 1.000 fiscalizações e cuja ação permitiu uma redução superior a 600 milhões de reais no custo de 415 obras públicas.
Paulo Jares | |
Leilão da Telebrás, em 1998: a privatização melhorou serviços em todas as áreas e trouxe enormes benefícios ao Brasil, que Lula nega e Alckmin não defende, de olho na parcela do eleitorado que ainda se encanta com o ideário nacionalista e se opõe ao "entreguismo" | |
Ed Ferreira/AE | Celso Junior/AE |
Esse é um dos grandes nós que o Brasil precisa desatar para melhorar a qualidade do gasto público. Para avançar nesse campo, algumas providências anteriores são necessárias. Um dos primeiros passos de todos os governos que conseguiram domar seus gastos é um choque de realidade no orçamento. Parece óbvio que governos tenham de tratar de suas finanças com os pés no chão. Não é assim que funciona no Brasil. A proposta orçamentária enviada ao Congresso todos os anos é uma peça de ficção. Seu processo de criação é conhecido: para atender a todos os acordos políticos e agradar às bancadas dos partidos, o governo faz um cálculo de despesas muito acima do que pode gastar. O papel aceita tudo. Como para cada centavo gasto tem de haver dinheiro correspondente no caixa, envia-se uma proposta de arrecadação sempre mais alta. O resultado é que o governo trabalha para aumentar a fatia de dinheiro que cobra em impostos e, quando não consegue, determina um corte nos gastos, chamado de contingenciamento. "Esses congelamentos no orçamento geram insegurança e fazem com que seja embutido no preço o risco do não pagamento", explica o ex-ministro do Planejamento e secretário de Economia do governo do Espírito Santo, Guilherme Dias. Seguindo a cartilha do realismo orçamentário, seu estado conseguiu sair de uma situação pré-falimentar em 2002 e retomou investimentos públicos.
No âmbito do governo federal, algumas medidas já foram adotadas para tentar conter a gastança. Uma das principais é o pregão eletrônico, que agilizou o sistema de compras do governo federal, liberando-o de várias exigências da Lei nº 8666, que regula as licitações. Com efeito, não faz sentido que para comprar copos de plástico a União tenha de cumprir as mesmas etapas exigidas para a construção de uma hidrelétrica. O que numa obra de grande porte é necessário como mecanismo de controle (ainda que a lei possa ser melhorada), na contratação de serviços ou na aquisição de material de uso cotidiano torna-se campo fértil para o favorecimento e a venda de facilidades. O pregão eletrônico já responde por 46,6% do total de compras da União e é um inequívoco avanço. Ainda assim, em algumas ocasiões, o Estado acaba pagando mais caro do que a média do mercado, como está demonstrado no quadro que ilustra esta reportagem. Um dos motivos é a inexistência de um levantamento sistemático de preços médios de bens e serviços no mercado, que sirva de parâmetro de avaliação tanto para os responsáveis pelas compras quanto para os órgãos fiscalizadores.
O caso do pregão eletrônico é exemplar. Mostra que, mesmo quando adota bons mecanismos, o Estado tem dificuldade em gastar corretamente. Os volumes envolvidos são muito altos, exigindo controle rígido, que, paradoxalmente, acaba favorecendo desmandos. Por esse motivo, é importante que a presença do Estado se concentre em setores específicos, como saúde, educação e infra-estrutura básica. E que estabeleça critérios de aferição da qualidade do serviço. "No Brasil, a preocupação é com o volume de recursos disponível para um determinado programa, não se ele é necessário ou se atinge seus objetivos", analisa Marcelo Piancastelli, diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Basta ouvir os discursos dos candidatos à Presidência para constatar a veracidade da afirmação. Ambos enchem a boca para dizer quanto gastaram. Raramente podem fazer o mesmo em relação a resultados e benefícios para a população.
Já em relação à privatização, o debate presidencial abordou o assunto de forma deliberadamente distorcida. A perda de capacidade de investimento do Estado e a má qualidade do gasto público tornam altamente recomendável a venda da maior parte das estatais. A idéia de que a privatização contraria os interesses do povo não é mais do que uma nuvem de fumaça que se lança sobre a questão toda vez que o interesse eleitoral aflora. Seus defensores fazem passar a falsa impressão de que a venda de estatais é, por princípio, uma dilapidação do patrimônio do povo. É evidente que podem acontecer desvios em processos de privatização. Mas utilizar-se desse argumento para pôr em xeque os benefícios da venda de estatais é mera manobra eleitoreira. O histórico das empresas que passaram à iniciativa privada só demonstra o óbvio: as estatais não pertencem verdadeiramente ao povo. Seus donos são, pela ordem, o Estado e os eventuais ocupantes do governo, que as utilizam ao sabor dos interesses partidários. Enquanto estiveram nas mãos dos governos, estatais como Vale do Rio Doce, Telebrás, Companhia Siderúrgica Nacional e outras tantas geraram déficits sucessivos e atraso no desenvolvimento do país.
O melhor exemplo vem das telecomunicações. O Brasil deixou de ser um país em que havia um mercado paralelo de telefones, tamanha a dificuldade de obter um. Hoje são 95,8 milhões de celulares. O telefone se tornou uma ferramenta de inclusão de profissionais liberais e prestadores de serviços na economia de mercado. Um estudo do BNDES de 1996 analisou o desempenho de 46 empresas privatizadas entre 1981 e 1994 e descobriu como havia desperdício sob a administração do Estado. A Companhia Siderúrgica Nacional, por exemplo, tinha contratado a construção de uma represa por 7 milhões de dólares. Os novos donos barraram o contrato e conseguiram fazer a mesma obra por 2,7 milhões de dólares. A diferença de preço demonstra o óbvio. O dinheiro pago a mais não estava indo para o bolso da população. Engordava apenas a conta de uns poucos empresários e de burocratas instalados na direção das estatais.
O presidente Lula deu, ao longo dos últimos três anos e dez meses, demonstrações de que havia finalmente entendido isso. Em seu governo foi aprovado o projeto de parcerias público-privadas, nas quais o governo divide com empresas privadas o investimento em setores tipicamente estatais, que estão no rumo da obsolescência. Por isso, soa incoerente quando o próprio presidente se opõe às privatizações. E, mais, coloca o país sob suspeita. Os economistas Armando Castelar e Fabio Giambiagi já alertaram, no livro Rompendo o Marasmo – A Retomada do Desenvolvimento no Brasil, sobre o risco que a ameaça de retrocessos implica. Dizem eles: "Resolver esse problema de credibilidade é essencial para que se consiga atrair o investimento privado para setores em que o risco de expropriação é alto". Há um motivo adicional para que o presidente modere sua fala nesta reta final da campanha. Foi em zonas de sombras dos Correios, do Banco do Brasil, da Petrobras, de Furnas e do Instituto de Resseguros do Brasil, todas empresas controladas pelo governo, que surgiram os grandes escândalos que destruíram a aura de ética da qual o presidente Lula e o PT se beneficiaram por tantos anos.
VIVA A PRIVATIZAÇÃO
Eis por que as empresas que saíram do controle estatal se tornaram mais lucrativas e socialmente mais úteis e pararam de funcionar como mais um ralo por onde escoa o dinheiro público
• Melhoria dos serviços, pelo incentivo à concorrência e aumento dos investimentos em tecnologia
• Atração de capital estrangeiro
• Pulverização do capital, transformando a ex-estatal em empresa pública
• Fim de diversos subsídios disfarçados, que resultavam em tarifas artificialmente baixas, debilitando ainda mais a saúde financeira das empresas
• Possibilidade de redirecionamento dos recursos do Estado antes destinados às estatais para fins sociais
Fotos divulgação/Cláudio Rossi/Antônio Milena/Daniela Picoral |