O Estado de S. Paulo |
21/5/2008 |
A Câmara dos Deputados prepara-se para votar o PL 73/99, projeto de lei que institui cotas para alunos de escolas públicas e subcotas raciais nas universidades federais e nas escolas técnicas federais. Ele se apresenta como iniciativa de inclusão social, mas nada tem que ver com isso. Se quisessem promover inclusão, dobrariam as vagas nas universidades públicas, algo relativamente barato, e se limitariam a introduzir cotas para alunos de escolas públicas, como compensação provisória da calamidade que é o ensino médio oficial. O PL de cotas raciais existe para dinamitar o mito de origem do qual emana a identidade brasileira. A nação é uma “comunidade imaginada”, na expressão de Benedict Anderson. O Estado-nação surgiu na escola, com a expansão e universalização da educação pública, e se refaz o tempo todo por meio de uma narrativa de unidade difundida nas salas de aula. Língua e Literatura configuram a nação na esfera da cultura. A História inscreve a nação no tempo; a Geografia a imprime no espaço. O nosso mito de origem nasceu no Império, com o naturalista Carl Von Martius, que descreveu o Brasil como a junção de três rios: as culturas indígena, européia e africana. Ele se consolidou na República, com Gilberto Freyre, que disse que essas águas se misturaram no grande rio da nação mestiça. O PL de cotas raciais tem a função exclusiva de substituir essa narrativa por uma outra. Nas escolas públicas, estudantes de todas as cores, oriundos de famílias da classe trabalhadora, aprendem que, como cidadãos brasileiros, têm direitos iguais. A lei das cotas veiculará a mensagem de que isso não é mais verdade. Ela separará as turmas de alunos em dois grupos, dividindo-os pela fronteira da raça. De um lado, ficarão os alunos rotulados como “brancos”; do outro, os alunos carimbados como “negros”. Dos primeiros será cobrada uma “dívida histórica” contraída pelos proprietários de escravos. Aos segundos, que desempenharão o papel fraudulento de descendentes de escravos, será oferecida a renda proveniente daquela cobrança. Colegas de classe e de folguedos, que vivem nas mesmas ruas, às vezes nas mesmas casas, e cursaram juntos a mesma escola, serão julgados não pelo desempenho no mesmo exame, mas pela cor da sua pele. O PL de cotas raciais narra um mito perverso de três rios que correm paralelos, sem nunca se encontrarem. A troca do mito do encontro pelo do desencontro é uma operação conduzida por um Estado ideológico, engajado na falsificação da identidade nacional. O Ipea divulgou a “informação” de que a “população negra” superará este ano a “população branca”. Os dirigentes do órgão público agem, à revelia da lei, como militantes de sua causa. A verdade é que continua a aumentar a parcela dos que se classificam como “pardos”, enquanto se reduzem as parcelas que se classificam como “brancos” e como “pretos”. Nas pesquisas, os brasileiros dizem que são mestiços e rejeitam a polaridade das raças. Na mídia, os órgãos oficiais seqüestram a palavra dos cidadãos e propagam uma versão mentirosa que significa exatamente o oposto. Eles apagam os mestiços das estatísticas, erguendo diques nos rios de Martius para impedir a confluência de suas águas. A fotografia de uma turma das escolas públicas brasileiras revela a presença dominante de um gradiente de tons de pele intermediários entre o “branco” e o “preto”. Na sua imensa maioria, os meninos e as meninas das nossas escolas públicas corporificam as complexas mestiçagens que fabricaram uma nação nova, num mundo apartado da “tradição do sangue” vigente tanto na Europa quanto na África. Onde exatamente será traçada a fronteira racial exigida pelo PL de cotas? Pelo alto, universidades engajadas na operação de divisão racial do Brasil fotografam e entrevistam os candidatos, atribuindo-lhes rótulos raciais irrecorríveis. Por baixo, de acordo com norma do MEC em vigor há três anos, as fichas de matrícula no ensino básico associam cada aluno a uma “raça”. O Estado brasileiro, cercado por uma rede de ONGs racialistas, não pretende deixar nenhum jovem sem um carimbo de “raça”. A engenharia social racialista que formulou o PL de cotas é um elo do programa internacional do multiculturalismo. A sua fonte original se encontra na Fundação Ford, que financia as redes de ONGs empenhadas na fabricação de etnias e raças. O seu motor ideológico se encontra na academia, entre intelectuais dedicados a escrever narrativas identitárias baseadas na “tradição do sangue”. As teses desses intelectuais não são motivadas pelo propósito de investigar o passado, mas pelo imperativo de legitimar um programa de ação política. A manipulação, a distorção e a fraude são suas ferramentas cotidianas de trabalho. A certeza de uma carreira de sucesso e a expectativa da conquista de posições de prestígio e influência são as compensações oferecidas por seus financiadores. Hoje, amparada por um Estado que brinca com a coesão nacional, essa fábrica de ideologias escreve uma história racial do Brasil. Mitos não são verdades nem mentiras. Eles contam o que imaginamos que somos e apontam na direção daquilo que queremos ser. O nosso mito de origem não impede que se reconheçam as violências históricas perpetradas contra indígenas e escravos. Mas ele nos iguala como cidadãos, erguendo uma plataforma que nos impele a exigir direitos sociais e econômicos para todos. Quando se iniciar a sessão de votação do PL de cotas, as galerias da Câmara estarão ocupadas por ativistas das ONGs racialistas, muitos deles funcionários públicos em cargos de confiança. A minoria organizada encarnará a representação imaginária de uma “raça” e se apresentará como procuradora dos antigos escravos. Se a farsa intimidatória funcionar, uma narrativa de ressentimento e rancor começará a invadir as salas de aula, envenenando o futuro. |
Entrevista:O Estado inteligente
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