Adormecida durante uma década, a inflação ameaça
o Brasil e o mundo. As armas para combatê-la
são conhecidas. Basta coragem para usá-las
Marcio Aith
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A palavra inflação não faz parte do cotidiano dos 50 milhões de brasileiros com menos de 15 anos de idade, assim como as mudanças freqüentes do nome do dinheiro brasileiro. Desde que veio ao mundo, esse contingente demográfico só consumiu e poupou em real, moeda cuja cédula de mais baixo valor ainda circula desde que foi lançada, em julho de 1994. Essas pessoas cresceram num ambiente de normalidade monetária. Já os demais brasileiros ainda registram na memória o poder destruidor da alta de preços que erodia o poder de compra da moeda e tornava a vida de todo mundo um inferno. Entre julho de 1974, ano em que o dragão da inflação nasceu no Brasil, e o lançamento do real, em junho de 1994, o índice geral de preços da Fundação Getulio Vargas registrou uma alta de 101 240 982 237 321%. É isto mesmo: cento e um trilhões e duzentos e quarenta bilhões por cento. Para se ter uma idéia, se um alfinete comum de aço aumentasse de tamanho esses mesmos 101,24 trilhões por cento, acabaria por atingir o peso de mais de 900 000 toneladas – o suficiente para abastecer o mercado interno nacional por quinze dias. Um litro de água cujo volume crescesse nessa proporção equivaleria a 1 bilhão de metros cúbicos – ou toda a água distribuída na Grande São Paulo em um ano. Um quilo de feijão cujo peso aumentasse em tal proporção representaria a produção brasileira de 312 anos seguidos.
Pois o monstro da inflação, que parecia derrotado não só no país, mas no mundo, voltou a assombrar. O sinal de alerta acaba de ser aceso. Os preços internacionais de produtos básicos e essenciais – entre eles o petróleo, os metais e os alimentos – passaram a subir rapidamente, trazendo uma amea-ça não vista desde as crises do petróleo dos anos 70. Mesmo economias sólidas e com antecedentes exemplares de disciplina monetária passaram a enfrentar um inesperado aumento no ritmo de elevação dos preços. De acordo com estimativas compiladas pela revista inglesa The Economist, dois terços da população mundial de-verá conviver com inflação acima de 10% neste ano. A velocidade no reajuste de preços aumentou em todos os cantos do globo (veja quadro), do Chile à China, dos Estados Unidos à Austrália. Inesperadamente, a globalização, que até pouco tempo atrás exportava preços baixos, passou a disseminar inflação. "É um fogo com o qual não vale a pena brincar", alerta Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central.
Antonio Milena |
O GUARDIÃO DA MOEDA Henrique Meirelles, presidente do BC: atuação exemplar, apesar das pressões |
O que explica essa recente escalada dos preços? Os primeiros suspeitos são os preços das commodities. O produto que mais subiu foi o petróleo. Há cinco anos, o barril custava menos de 30 dólares. Hoje é vendido a 130 dólares – o maior valor em termos reais (já descontada a inflação) desde o segundo choque do petróleo, em 1979. Os metais e alguns produtos alimentícios também tiveram altas expressivas, superiores a 100%. Esse fenômeno deve-se ao forte crescimento da economia internacional dos últimos anos, especialmente na China e na Índia. Em especial, à incorporação de milhões de novos consumidores ao mercado planetário. De acordo com estimativas do Banco Mundial, a aceleração do crescimento global retirou 500 milhões de pessoas da miséria e pobreza nos últimos quinze anos – em outras palavras, o avanço do capitalismo tirou da sarjeta praticamente uma pessoa por segundo. É gente que passou a comer mais proteína e começou a adquirir casas, carros e eletrônicos. A alta nas commodities, portanto, deve ser entendida como um reflexo do crescimento expressivo no consumo mundial, decorrente de um período de enriquecimento sem paralelo na história.
No passado, economistas pregavam que não havia remédio contra um aumento inflacionário originado em outro canto do mundo. Segundo eles, seria desastroso elevar os juros de um país, e assim conter o consumo interno, para enfrentar a alta de uma mercadoria cujo preço é definido mundialmente. Ao final desse processo, argumentavam, o remédio mataria o doente sem que a doença fosse debelada. Essa aparente lógica escondia uma verdade inconveniente. Altas eventuais de um produto ou de outro, como as das commodities, podem transformar-se em reajustes generalizados se os governos gastarem em excesso e as autoridades monetárias atuarem com frouxidão. Como afirmam os economistas ouvidos por VEJA, cidadãos e empresas pressionam por reajustes de salários e preços preventivamente sempre que pressentem um descontrole inflacionário. Por isso, um banco central zeloso de suas funções não deve deixar nunca que uma economia superaqueça e avance acima de suas possibilidades e que uma alta localizada de preços contamine os índices de inflação.
Felizmente o debate atual não contempla loucuras. Economistas de todos os espectros ideológicos concordam que a inflação é uma desgraça e precisa ser combatida. A diferença reside na ênfase que se deve dar aos juros, de um lado, ou ao corte de gastos públicos, de outro, como o instrumento mais adequado para fazê-lo – um avanço extraordinário, considerando que, até pouco tempo atrás, professores universitários enalteciam supostas vantagens da inflação. "O perigo da inflação existe, mas a compreensão do presidente Lula quanto à importância de mantê-la sob controle assegura que as medidas necessárias serão tomadas", diz Luciano Coutinho, presidente do BNDES e um dos principais conselheiros econômicos do governo.
AP |
DE VOLTA AOS 70 Posto americano fecha por falta de gasolina em 1973: petróleo é novamente o vilão |
A equipe econômica brasileira, diante do histórico inflacionário do país, tem se comportado exemplarmente. Em especial, o presidente do BC, Henrique Meirelles, que, a despeito de quase todos os prognósticos e pressões políticas que sofreu desde 2003, cumpriu com perfeição todas as metas que lhe foram conferidas pelo presidente da República. Seu bom desempenho ilustra as qualidades de um BC autônomo, alheio a interesses políticos ou eleitorais. Somente países institucionalmente frágeis permitem que a condução da política monetária seja influenciada pela agenda política ou eleitoral do governante de plantão. Na última sexta-feira, o governo reforçou seu arsenal contra a inflação e saiu em socorro a Meirelles. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciou que o governo fará um superávit primário adicional de 0,5% do produto interno bruto (PIB) neste ano. Isso significa que o governo vai deixar de gastar mais 13 bilhões de reais. A poupança extra representa menos dinheiro na praça, o que ajudará o Banco Central no combate à inflação. "O gasto elevado induz o Banco Central a fazer uma política monetária conservadora. Com as medidas que estamos anunciando agora, passaremos a exigir menos dela", diz Mantega. Ou seja, a política monetária e a fiscal vão trabalhar de mãos dadas para conter a inflação. "A iniciativa de incrementar a poupança do setor público é positiva", agradece Meirelles.
Na última década, os bancos centrais tiveram a sua tarefa facilitada graças a uma combinação rara de fatos favoráveis. Entre eles a revolução tecnológica e a transformação da China numa economia de mercado. O aumento da produtividade decorrente desses elementos permitiu que os juros, em quase todo o mundo, permanecessem em níveis historicamente baixos, sem que a inflação se tornasse um problema. Mas há indícios de que essa janela de oportunidade tenha se estreitado, como já alertava Alan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve, o banco central americano, em entrevista a VEJA no ano passado. Isso porque os ganhos tecnológicos já foram incorporados plenamente, e os preços dos produtos exportados pela China vêm subindo gradualmente. A partir de agora, os países terão de retirar do armário suas armas de combate à inflação. A história ensina que esse monstro escapa ao controle sem um ataque fulminante que combine austeridade nas contas públicas e vigilância monetária.
A maior parte das nações civilizadas parece ter apreendido que, com inflação, não se brinca. Os brasileiros adultos sabem quanto ela pode erodir a vida cotidiana e os sonhos e projetos de cada um. VEJA localizou cinco cidadãos que conheceram de perto essa chaga destruidora de riqueza. Quando ilustraram reportagens da revista, em momentos distintos ao longo das últimas duas décadas, sofriam na pele os efeitos catastróficos da perda acelerada do poder de compra da moeda. Seus novos relatos, que acompanham estas páginas, mostram quão essencial é a estabilidade monetária a uma geração que começa agora a sua carreira profissional e teve a felicidade de nunca ter experimentado esse desarranjo financeiro. Na sexta-feira, o presidente Lula disse que faria o que fosse preciso para evitar a volta da inflação. "Quando ela voltar, quem vai quebrar é o bolso do povo pobre, trabalhador. Nós, do governo, vamos fazer o sacrifício que tivermos de fazer para manter uma política fiscal responsável." É o santo guerreiro contra o dragão da maldade.
"A LUTA, AGORA, É CONTRA IMPOSTOS"
Em 1986, quando apareceram pela primeira vez nas páginas de VEJA, Neide Spacov (à dir.), hoje com 61 anos, e Roseli Carmignani, 53, de São Bernardo do Campo, faziam parte de um grupo de donas-de-casa (foto menor) que abraçou como trabalho voluntário a fiscalização dos preços. O Plano Cruzado, que tinha o tabelamento como uma de suas medidas, havia acabado de ser lançado pelo então presidente José Sarney. O Cruzado fracassou, mas elas se orgulham de ter contribuído para "iniciar o processo" que levaria ao fim o pesadelo inflacionário. A psicóloga Neide segue de olho nos preços. Hoje conta com uma ferramenta nova: a internet. "Compro sempre livros pela rede, consigo preços muito melhores", diz ela. Já Roseli arrumou uma nova bandeira: "A luta não é mais o combate à inflação, mas contra os impostos elevados". |
SEIS ANOS SEM REAJUSTE DE PREÇOS
Em julho de 1990, em uma reportagem de VEJA, as gêmeas Suzana e Rosana Bettega, 48 anos, de Curitiba, relataram como o confisco do Plano Collor havia afetado a vida delas. Ambas comandavam uma confecção de lingerie. Além da insatisfação em não poder usar suas economias, confiscadas, as irmãs revelavam-se céticas quanto à eficácia de mais um pacote econômico que prometia derrotar a inflação. Sem dinheiro para se financiarem, tiveram de aumentar os preços, de uma vez só, em 100% – parte por causa do aumento das matérias-primas e parte para se defender da expectativa de uma inflação mais alta. A confecção fechou as portas em 1998. Atualmente, as irmãs ganham a vida lecionando inglês. Um detalhe: elas não reajustam o preço das aulas desde 2002. |
O COMBUSTÍVEL DA DISCÓRDIA O empresário paranaense Colatino Castro Neto, 58 anos, então dono de um posto de gasolina, ganhou destaque numa reportagem de VEJA, em 1990, por ter atendido ao pedido do então presidente Fernando Collor: reduziu sua margem de lucro e diminuiu o preço do combustível na bomba. Otimista com o pacote econômico que tinha acabado de ser lançado, Castro Neto decidiu apostar no controle da inflação porque via nele as sementes do avanço econômico. Deu-se mal. Recebeu notificações por suposta concorrência desleal, enfrentou ameaças de outros donos de postos e por pouco não parou atrás das grades. O empresário se lembra de que, em períodos de inflação descontrolada, os postos chegavam a remarcar os preços duas vezes ao dia. Depois de sofrer dezenove assaltos, Castro Neto vendeu o posto em 2000 e hoje trabalha como leiloeiro. Não deixou de acompanhar o setor com interesse: "Quando percebo que os postos estão praticando preços altos, vou até a cidade vizinha para abastecer". |
Receitas para uma mesma doença Economistas desenvolvimentistas e liberais
Luiz Gonzaga Belluzzo
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O GLOSSÁRIO DA INFLAÇÃO
O economista Salomão Quadros, especialista em inflação da FGV e autor do livro Muito Além dos Índices, fez, a pedido de VEJA, um pequeno dicionário sobre a alta nos preços • INFLAÇÃO: Aumento generalizado de preços. Uma alta isolada, como a do feijão, embora apareça nos índices inflacionários, é sinal de um problema específico desse produto (seca ou geada), que poderá ser corrigido na safra seguinte. • AS CAUSAS: A inflação decorre do aumento da demanda agregada (consumo, investimentos, gastos do governo e exportações) em ritmo superior ao da oferta (produção, importação e estoques). • HIPERINFLAÇÃO: Por convenção, é o aumento de preços à taxa mensal de 50%. Ocorre quando o governo perde a capacidade de financiar seus gastos e recorre à emissão geralmente explosiva de moeda. • HIPERINFLAÇÃO NA HISTÓRIA: O caso mais estudado é o da Alemanha, entre agosto de 1922 e novembro de 1923, período em que os preços subiram 10 bilhões de vezes. Mais devastadora foi a hiperinflação húngara, de agosto de 1945 a julho de 1946: os preços ficaram 4 octilhões (4 vezes 10 elevado à 27ª potência) de vezes maiores. • DEFLAÇÃO: Queda geral e sistemática de preços. Se prolongada, é sintoma de perda de dinâmica econômica, como ocorreu no Japão até recentemente. • ESTAGFLAÇÃO: Combinação de inflação com estagnação. Foi o que aconteceu com as economias avançadas em 1974, após o primeiro choque do petróleo. • CORREÇÃO MONETÁRIA: Reajuste periódico de valores financeiros (títulos públicos e privados, saldos de aplicações e de dívidas, entre outros), utilizando como referência os índices de preço. No Brasil, foi introduzida em 1964, substituindo a Lei de Usura, de 1933, que limitava os juros a 12% ao ano. Teve virtudes (o governo passou a se financiar por meio de títulos, reduzindo a pressão inflacionária resultante de emissões de moeda), mas preservava a memória inflacionária. • CHOQUE DE OFERTA: Redução na quantidade ofertada de um produto com o aumento subseqüente de preços. O melhor exemplo é a crise do petróleo. • AGRINFLAÇÃO: Inflação de preços agrícolas. |
Com reportagem de Cíntia Borsato, Renata Moraes e Ronaldo França