A má vontade inicial com o Plano Real foi importante, deu-lhe mais valor
Por iniciativa da vereadora Andrea Gouvêa Vieira, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, neste último dia 19, agraciou com a Medalha Pedro Ernesto os economistas André Lara Resende, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Pedro Malan e Pérsio Arida, criadores do Plano Real.
Não obstante ter sido uma festa tucana, marcada pela referência ao expresidente Fernando Henrique Cardoso, a solenidade foi também uma comemoração brasileira. Impossível, é certo, distinguir o Plano Real de FHC e do PSDB, mas isso não quer dizer que não se possa aplaudir um projeto cujo êxito ultrapassa as barreiras partidárias, tornando-se uma conquista dos brasileiros e de todos os partidos políticos, inclusive do PT, apesar da postura negativa que teve contra o plano.
Pois a oposição, como o time adversário numa partida de futebol, também faz parte do jogo, que não poderia acontecer sem o seu concurso.
A vitória de uma iniciativa que começa no plano político, mas se desdobra por toda a sociedade, tem muito mais valor justamente pela resistência dos que então estavam do “outro lado”. No plano simbólico, o Plano Real é equivalente à eleição de Lula. Se uma oposição dizia que Lula presidente iria promover a desconstrução do Brasil, o que se viu foi uma competente continuidade, justamente na área da estabilidade monetária, uma dimensão tida como secundária pela parcela mais estatizante dos nossos economistas clássicos. É preciso, nestes quase inacreditáveis quinze anos de estabilidade monetária e de compromissos com políticas que tornaram o mercado mais eficiente e mais justo, que se dê, em primeiríssimo lugar, crédito às previsões negativas dos adversários.
No plano cultural, isso mostra que o jogo político deixou de ser uma briga de galo. Se no passado pré-real o opositor era o inimigo a ser esmagado a qualquer preço e artimanha, hoje há uma consciência de que o campo político se parece cada vez mais a um campo de futebol.
Graças a essa convergência de políticas financeiras que resultaram num insuspeitado sucesso econômico, começamos a ver o opositor como adversário a ser não só respeitado mas, acima de tudo, preservado, porque não há democracia sem um outro lado.
A má vontade com o Plano Real, chamado — como foi lembrado com contenção tucana pelos homenageados — de tudo, menos de mecanismo capaz de liquidar o dragão inflacionário e permitir o ingresso da sociedade brasileira no clube dos países onde os cidadãos podiam igualar-se perante a sua moeda nacional, foi importante para o plano, deu-lhe mais valor.
E mais que isso, o fato de, ao longo do tempo, a economia do real perder o estatuto de “herança maldita” e passar a pertencer também ao governo Lula promoveu, pela primeira vez na história deste país, um efeito de convergência de extremos, criando um poderoso denominador comum que é uma dimensão crítica da vida com mais igualdade e sem a perda da liberdade.
Um sistema no qual todos — governantes e governados — obedecem e respeitam a lei e não um partido, ditador ou líder messiânico.
Quero crer que hoje ouvimos pela primeira vez no campo político nacional os sussurros de um denso reconhecimento.
Afinal, reconhecem os de um lado, eles não estavam tão errados; ao fim e ao cabo, dizem os do outro, eles — apesar de tudo e precisamente por serem adversários — merecem crédito! Por ser um fato social total, a moeda tem um lado econômico, mas também possui dimensões históricas, religiosas, culturais, jurídicas, políticas e psicológicas. O sucesso do real trás para o campo mais primitivo da disputa partidária algo a ser preservado. Assim, de modo diverso do que acontecia nos Brasis antigos, quando um governo destruía impiedosamente o trabalho do outro, hoje não há quem queira liquidar a moeda. E, com ela, as referências de previsão, de bem-estar social e de medida de sucesso que a sua estabilidade exprime. Será que, para além das balizas financeiras, o real trouxe os limites para a oposição política? A revisão das divergências tidas como irreconciliáveis que ainda entravam a vida nacional no momento em que desfrutamos de um enorme sucesso econômico? ’Se acabamos com a inflação por meio de negociação política, por que não podemos liquidar a criminalidade, a corrupção e a ignorância? A tudo o que foi brilhantemente acentuado na solenidade, eu acrescentaria que, no plano cultural, a maior contribuição do real foi impor limites concretos à elite política. Antigamente essa elite era medida apenas por sua sagacidade clientelística.
O povo, sem moeda estável, não tinha como aferir a sua competência administrativa.
O real, porém, começa a coagir o “político” a ser um administrador público. A transformar-se num gerente responsável por esses reais que podem sobrar para serem aplicados em projetos básicos, ou serem populisticamente dissipados. A igualdade perante a moeda dá alento à ampliação da igualdade perante a lei; e vai assim — queira Deus! — sepultando as várias moedas que circulavam na sociedade, as quais permitiam que certos grupos e pessoas tivessem mais valor que outras.
Entrevista:O Estado inteligente
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