Ruy M. Altenfelder Silva*
O Tratado de Itaipu que criou a binacional é obra de inteligente engenharia jurídica, pensada e elaborada pelo saudoso professor Miguel Reale, constituindo-se numa lição de costura geopolítica que pôs fim a um conflito de fronteira, gerando a partilha de um recurso natural comum: as águas do Rio Paraná. Gerou uma empresa atípica: é binacional regendo-se pelas normas de Direito Internacional Público. Não é estatal nem sociedade por ações.
Em conferência proferida em 4 de julho de 1974, no Conselho Técnico de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, o professor Reale acentuou as providências que antecederam a criação da binacional: o cuidadoso exame dos problemas de Direito Internacional envolvidos na área.
No caso especial de Itaipu, lembrou que ela é constituída pelas Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobrás) e pela Administración Nacional de Electricidad (Ande), do Paraguai, com igual participação no capital, regendo-se pelas normas do Tratado e do Estatuto.
Demonstrando a característica dessa estrutura jurídica "sui generis", lembrou que, embora a empresa seja constituída pela Eletrobrás e a Ande, o Estatuto só poderá ser alterado mediante autorização prévia dos dois governos.
Surgiu, assim, como concluiu o professor Reale, uma "entidade internacional de natureza empresária", pois, em razão do aproveitamento dos recursos hídricos comuns, poderão ser resolvidas as situações jurídicas e o quadro de direitos e deveres, respeitando sempre o princípio de igualdade das soberanias, que, desde as lições de Rui Barbosa, em Haia, constitui um dos elementos basilares de nossa política externa.
Um alto princípio de paridade e de respeito mútuo presidiu a elaboração do Tratado de Itaipu. O Estatuto da empresa pública binacional permitiu superar o impasse que surge em toda sociedade anônima em que dois grupos detenham número igual de ações. Dada a natureza do empreendimento, como destacou o professor Reale, não pode haver, na Itaipu, predomínio de uma parte sobre a outra, transferindo-se eventuais divergências para o plano diplomático: entendimento e acerto entre os dois governos, inclusive no tocante à interpretação das cláusulas do Tratado e de seus anexos.
Embora o Tratado e o Estatuto não confiram explicitamente personalidade jurídica autônoma a Itaipu, tal configuração está implícita no artigo 4º do Estatuto: "A empresa terá capacidade jurídica, financeira e administrativa e também responsabilidade técnica, para estudar, projetar, dirigir e executar as obras que têm como objeto, pô-las em funcionamento e explorá-las, podendo, para tais efeitos, adquirir direitos e contrair obrigações."
No tocante ao tipo de "royalty" previsto no artigo 15 do Tratado, é devido pela Itaipu aos dois países em razão da utilização do potencial hidráulico, devendo ser pago em dólares.
Relevante também é o ponto relativo à atribuição de poderes outorgados pelos dois governos à entidade por eles criada com o fim de explorar os recursos hídricos possuídos em condomínio, assegurando-lhes, assim, ampla isenção fiscal.
O Tratado de Itaipu, pensado e elaborado pelo professor Reale, salienta no artigo 13 que a energia produzida será dividida em partes iguais, sendo reconhecido a cada um dos países o direito de adquirir a que não for utilizada pelo outro para seu próprio consumo, assegurada sempre a aquisição do total da potência instalada.
Ao entregar a Ordem Nacional do Mérito ao professor Miguel Reale, o então presidente Fernando Henrique Cardoso ressaltou o papel essencial que ele teve na definição da Itaipu Binacional, como tratadista, propositor e orientador do Tratado que permitiu um relacionamento adequado com o Paraguai, que, espera-se, continue prosperando.
*Ruy Martins Altenfelder Silva é presidente do Conselho Administrativo da Fundação Nuce e Miguel Reale e da Academia Paulista de Letras Jurídicas