Os brasileiros estão entre os que mais sofrem
desse mal. Na raiz do problema, má alimentação,
stress, insônia e uso errado de analgésicos
Anna Paula Buchalla
VEJA TAMBÉM
|
A dor de cabeça é um grande tormento no Brasil. O país aparece entre os cinco primeiros colocados na lista de incidência das cefaléias mais comuns e penosas. Nós somos os campeões da dor de cabeça crônica diária e estamos em quarto lugar tanto no ranking da cefaléia tensional quanto no da enxaqueca. Juntas, as três martirizam a vida de pelo menos 63 milhões de homens e mulheres, jovens e velhos. Esse cenário acaba de ganhar um contorno mais nítido por meio do maior levantamento sobre dor de cabeça já feito no país. Coordenada pelos neurologistas Luiz Paulo Queiroz, da Universidade Federal de Santa Catarina, e Mario Peres, do hospital Albert Einstein, de São Paulo, a pesquisa ouviu quase 4 000 pessoas, entre 18 e 79 anos. Há pelo menos 150 tipos de cefaléia catalogados na literatura médica. Trata-se, obviamente, de um distúrbio de causas e particularidades diversas. Mas a enxaqueca, a cefaléia tensional e a crônica diária têm, entre seus gatilhos, as piores características da vida moderna – stress, má alimentação, sedentarismo, abuso de analgésicos, ansiedade, depressão e problemas de sono. "Esses fatores não apenas deflagram a dor, como podem transformar uma dor eventual em uma dor crônica", diz o médico Peres. A levar em conta como a maioria dos brasileiros cuida da própria saúde, o prognóstico é desalentador.
Dos três tipos de cefaléia abordados pelo levantamento, o mais corriqueiro é a dor de cabeça tensional – aquela que surge depois de um dia exaustivo de trabalho ou de uma noite maldormida. De cada 100 brasileiros, 36 relataram ter sofrido pelo menos uma crise ao longo do último ano. De intensidade leve a moderada, a dor de cabeça tensional costuma ser facilmente combatida com um comprimido de analgésico. Em segundo lugar, aparece a enxaqueca, com 16 milhões de vítimas – o equivalente a 15% da população adulta brasileira. Mas o que chama mais atenção na pesquisa é a incidência da dor de cabeça crônica diária. Nada menos do que 7% dos brasileiros, o equivalente a cerca de 7,5 milhões de homens e mulheres, são atormentados por crises que consomem no mínimo a metade de cada mês. A cefaléia crônica diária pode se manifestar tanto com as características da dor de cabeça tensional quanto com as da enxaqueca.
Um dos méritos do trabalho dos neurologistas Queiroz e Peres foi verificar em minúcias a estreita relação entre estilo de vida e dor de cabeça. Um dos dados mais impressionantes revelados pela pesquisa diz respeito ao impacto do sedentarismo. A enxaqueca é 43% mais freqüente entre os sedentários do que entre os que costumam praticar algum tipo de atividade física. Os exercícios físicos ajudam a prevenir a dor de cabeça por dois motivos. Eles deixam a pessoa mais relaxada e estimulam a liberação de endorfinas, uma espécie de analgésico produzido naturalmente pelo organismo. O mapa da dor de cabeça no Brasil revela, ainda, a conexão entre as crises de cefaléia e as exigências sociais e profissionais. A cefaléia tensional é três vezes mais comum entre aqueles com mais de oito anos de estudo do que no universo dos menos escolarizados. A cefaléia crônica diária é 63% mais freqüente entre os que ganham mais. Faz todo o sentido. Profissionais com salário alto e, conseqüentemente, cargo cobiçado são submetidos a pressões maiores.
A enxaqueca é a maior fonte de sofrimento. De moderadas a severas, as crises se manifestam por dor pulsátil, de um lado apenas da cabeça, que pode ser acompanhada por náuseas, vômitos, formigamento das mãos, aversão à luz, ao barulho e a odores fortes. Em algumas pessoas, ela é precedida de um fenômeno conhecido como aura – um conjunto de alterações visuais e da fala. É uma tortura que dura de quatro horas a três dias e afeta duas mulheres para cada homem. Por seus efeitos devastadores, a enxaqueca foi incluída na lista das vinte doenças que mais roubam anos de vida saudável de suas vítimas, formulada pela Organização Mundial de Saúde. Na 12ª posição, ela está à frente do diabetes e até da aids. Nenhuma cefaléia é tão complicada como a enxaqueca, seja em sua fisiopatologia, seja em seus gatilhos e formas de manifestação. Um de seus detonadores mais analisados são os hormônios. "A enorme oscilação dessas substâncias explica a preponderância da doença no universo feminino", diz o neurologista Getúlio Daré Rabello, coordenador do Ambulatório de Cefaléia do Hospital das Clínicas de São Paulo. Um terço das mulheres vítimas do problema é acometido pela "enxaqueca menstrual", que ocorre em virtude da queda natural nos níveis do hormônio estrógeno durante a menstruação. O uso de contraceptivos orais também pode desencadear episódios de dor.
Há outro ponto. "As vítimas da enxaqueca tendem a ser pessoas perfeccionistas, que se cobram demais, que se frustram caso as coisas não aconteçam como foram planejadas. A cobrança interna é extremamente nociva", diz o neurologista Mario Peres, autor do livro Dor de Cabeça – O que Ela Quer com Você? (editora Integrare). O dado mais preocupante surgiu recentemente, com a constatação estatística de que os enxaquecosos são mais sujeitos a sofrer derrames. A hipótese é que a constante diminuição do fluxo sanguíneo para a cabeça, típica das crises de enxaqueca, possa, com o tempo, deflagrar um acidente vascular cerebral.
Jon Feingersh-Stefanie/Getty Images e Pedro Rubens
|
Terapias Alternativas
Há uma série de estratégias não medicamentosas para debelar as crises e prevenir as dores de cabeça. A acupuntura aumenta a liberação de endorfinas, os analgésicos produzidos naturalmente pelo organismo. Ao tirar o foco de atenção da dor, a meditação e a ioga são úteis para as vítimas de cefaléia crônica |
Não raro, a cefaléia tensional e a enxaqueca evoluem para um quadro de dor de cabeça crônica. Por trás dessa mudança de padrão, está a repetição de comportamentos nocivos à saúde, como o consumo excessivo de analgésicos (veja quadro). No caso de uma cefaléia tensional episódica, o ideal é tomar um remédio assim que a dor começar. Os brasileiros, no entanto, tendem a esperar para ver se ela desaparece sozinha. Só que isso dificilmente ocorre. Quanto mais o tempo passa, mais intensa fica a dor e, por tabela, maior é a quantidade de medicamento necessária para debelá-la. Nessa espiral ascendente de consumo de drogas artificiais, o cérebro vai reduzindo a produção de endorfina, o analgésico natural do organismo, com repercussões incanceláveis. A ingestão de um comprimido mais de duas vezes por semana durante três meses já é o suficiente para transformar a dor de cabeça eventual em crônica. Para se ter uma idéia, sete de cada dez brasileiros com dor de cabeça constante tomavam analgésicos de maneira inadequada. Um estudo coordenado por Mario Peres, publicado na revista médica européia Journal of Headache and Pain, revelou que muitos dos pacientes que abusam dos analgésicos padecem de uma síndrome chamada cefalalgiafobia – o medo de sentir dor de cabeça. Ao resultar no exagero do consumo de medicamentos, essa fobia transforma o que era apenas receio em realidade dolorosa.
Além do exagero de medicamentos, uma extensa sucessão de noites maldormidas é fator de risco para tornar crônica a dor de cabeça. Crises freqüentes de insônia mantêm baixos os níveis de melatonina, o hormônio do sono que ajuda a evitar o aparecimento da dor, especialmente a enxaqueca, ao favorecer a síntese de analgésicos naturais. Há que levar em conta também que insones tendem a ficar mais irritados, estressados. E, como já se viu, o stress é gatilho para a cefaléia. É um ciclo vicioso, dos mais perniciosos. O mesmo raciocínio vale para a obesidade. O acúmulo de células adiposas causa um aumento nos níveis de diversas substâncias inflamatórias associadas às crises, como as interleucinas e o CGRP. Tais compostos participam da modulação da freqüência, intensidade e duração de uma crise. Se eles estão sempre lá, circulando pelo organismo, é grande a probabilidade de a pessoa vir a ser vítima de enxaqueca crônica. Uma pesquisa comparativa conduzida pelo neurologista brasileiro Marcelo Bigal, do Albert Einstein College of Medicine, de Nova York, mostrou que, no grupo das pessoas com peso normal, 4% tiveram de dez a quinze episódios de dor por mês. No das obesas, a proporção subiu para 14%.
Um dos maiores avanços no tratamento da enxaqueca e da cefaléia crônica foi a descoberta de que existem remédios capazes de prevenir a dor. Esse ataque preventivo funciona para metade dos pacientes. De antidepressivos a remédios para o coração e antiepilépticos, o arsenal é vasto (veja quadro).
Há poucos meses, um médico inglês começou a testar uma nova frente de combate à enxaqueca: o uso de um anticoagulante. John Chambers, cardiologista do Guy’s Hospital London, estuda a eficácia do remédio clopidogrel, cujo nome comercial no Brasil é Plavix, em centenas de pacientes. Os resultados, até agora, foram espetaculares. Houve redução significativa da intensidade da dor e aversão à luz e das náuseas e tonturas. O tratamento experimental de Chambers é baseado na hipótese de que as enxaquecas são causadas por microcoágulos que se formam no coração e partem em direção ao cérebro, atrapalhando a irrigação sanguínea.
No circuito coração-enxaqueca, haveria um segundo componente: o forame oval patente. Descobriu-se que ele está presente em até 60% dos doentes que relatam o fenômeno da aura. O forame oval patente, uma anomalia congênita, faz com que a membrana que separa os dois átrios do coração não se feche completamente. Com isso, o cérebro recebe um sangue menos oxigenado, com mais gás carbônico e outras substâncias que irritam os vasos cerebrais e deflagram a dor. O forame oval normalmente fecha no nascimento, mas em 20% das pessoas ele se mantém aberto. Já há médicos que arriscam prescrever cirurgia para fechar a comunicação entre os átrios cardíacos.
Para as crises instaladas, existe uma miríade de remédios. Além dos analgésicos habituais, há os antiinflamatórios relaxantes musculares e os triptanos. Estes últimos foram criados especificamente para o tratamento da enxaqueca. Lançados em meados da década de 90, eles agem nos receptores do neurotransmissor serotonina e apresentam menos efeitos colaterais. O laboratório americano Merck & Co. prevê para o ano que vem o lançamento de uma classe de remédios contra a mais temida das cefaléias. Trata-se de um inibidor de CGRP. O medicamento, em fase final de desenvolvimento, bloqueia os sinais da dor antes que eles cheguem ao cérebro, onde são processados. Cerca de 70% dos pacientes acompanhados tiveram alívio duas horas depois de ingerir a medicação.
Afora os remédios, há uma série de estratégias para a prevenção e eliminação de diversos tipos de cefaléia. Acupuntura, ioga e técnicas de relaxamento já se provaram razoavelmente eficazes. Como as dores de cabeça, especialmente a enxaqueca e as crônicas, são manifestações complexas, que guardam uma relação íntima com a história pessoal de cada paciente, os médicos se baseiam no sistema de tentativa e erro para a formulação de uma terapêutica adequada. O que funciona para um pode não surtir o menor efeito em outro – e vice-versa. Por esse motivo, será difícil surgir uma única bala de prata para exterminar todos os tipos de dor.
O cérebro não dói
A dor de cabeça pode aparecer na forma de latejamentos, formigamentos ou pressões. Na enxaqueca, ela é associada à vasodilatação. Na cefaléia do tipo tensional, sua origem é muscular. A dor, para existir, independentemente do tipo e da procedência, necessita de terminações chamadas nociceptores. No caso das cefaléias, os nociceptores estão, principalmente, na rede de nervos que se estende no couro cabeludo, na face e na região do pescoço. No processo químico e elétrico que as desencadeia, entram em ação substâncias químicas que se alternam na função de estimular ou de tentar suprimir sinais dolorosos. Está comprovado que as pessoas que sofrem de dores de cabeça severas e outros tipos de dores crônicas têm níveis mais baixos de um analgésico natural, a endorfina. |
|