O texto afinal aprovado já foi um compromisso para tentar contornar as resistências das chamadas bancadas da fé. E o então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, que entrou no STF com a ação direta de inconstitucionalidade contra o artigo 5º da Lei que trata do assunto, jamais escondeu a sua condição de católico fervoroso. É também o caso do ministro do Supremo Carlos Alberto Menezes Direito, o primeiro dos seus pares a se manifestar desfavoravelmente às pesquisas, nos termos estabelecidos na legislação. Ele retardou o veredicto da Corte em cerca de três meses, ao pedir vistas do processo quando começou a ser examinado, no início de março. Enfim, na quarta-feira, ao cabo de três sessões, o STF manteve, por 6 votos a 5, a integridade do dispositivo legal.
Significativamente, o veto aos estudos com células-tronco extraídas de embriões descartados ou congelados ao menos por três anos em clínicas de fertilidade assistida, com o consentimento dos genitores - como estipula a Lei de Biossegurança -, nem sequer se explicitou.
O ministro Direito não pediu a derrubada do referido artigo 5º. Preferiu recorrer ao ardil de lhe dar, como dizem os juristas, uma "interpretação conforme a Constituição": os trabalhos com as células-tronco seriam autorizados, mas sem a destruição dos embriões viáveis dos quais tivessem sido removidas. Para todos os efeitos práticos, a exigência equivale à proibição pura e simples. Só um grupo de pesquisadores, no mundo inteiro, conseguiu essa proeza.
Depois de desencadear uma discussão que se prolongou por mais de um ano e meio, replicando as audiências públicas e as pressões de defensores e adversários do uso de embriões para fins de terapia celular que antecederam a aprovação da Lei de Biossegurança, a ação impetrada pelo procurador-geral Fonteles obrigou o Supremo, em última análise, a julgar se um óvulo humano fertilizado, com cinco dias de desenvolvimento, ainda na fase pré-embrionária, portanto, é uma vida - uma questão especiosa como poucas até para a ciência. Segundo o ministro Direito, a resposta é sim, porque "desde a fecundação, o embrião é um indivíduo, um representante da espécie humana".
O seu colega Eros Grau concorda. "O embrião faz parte do gênero humano, já é uma parcela da humanidade." Mas, para o relator da ação, Carlos Ayres de Britto, que votou a favor das pesquisas, "vida humana já revestida do atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte". Ou, conforme a ex-presidente da Corte Ellen Gracie, "o pré-embrião não acolhido no seu ninho natural de desenvolvimento, o útero, não se classifica como pessoa".
Outros ministros preferiram enfatizar as dimensões substantivas do problema. Carmen Lúcia avaliou que as pesquisas com células embrionárias e "o seu aproveitamento em tratamentos voltados à recuperação da saúde não agridem a dignidade humana".
De seu lado, o ministro Joaquim Barbosa foi ao nervo da questão ao assinalar que a Lei de Biossegurança "respeita três primados fundamentais da República: laicidade, liberdade individual e liberdade de expressão da atividade intelectual e científica". No Estado laico, em outras palavras, o cientista é livre para trabalhar com células-tronco ou não, se isso afrontar os seus sentimentos religiosos; e os pacientes acometidos de doenças devastadoras até agora incuráveis serão livres para se beneficiar - ou não, pelo mesmo motivo - dos resultados dessas pesquisas promissoras. E o País, por fim, não ficará à margem da produção de conhecimentos de vanguarda dirigidos para a melhora da vida humana.