Para entender as incoerências devemos partir do documento mais abrangente: a reforma tributária - que está em fase de debates e recebimento de emendas. Trata-se de uma proposta de emenda constitucional que, apesar de apontar na direção correta da simplificação tributária, é tímida em seus propósitos, como já me referi em artigo neste mesmo espaço, e apresenta muitos problemas de concepção no novo imposto a ser criado - o IVA federal -, como está ficando claro nas audiências com especialistas já realizadas pela Comissão Especial da Reforma. Deixando de lado esses problemas e críticas, a verdade é que há dois objetivos declarados da reforma que quero destacar: o combate à chamada guerra fiscal entre os Estados e a simplificação tributária, com o conseqüente aumento da eficácia arrecadatória.
Justamente em relação a esses objetivos a Câmara dos Deputados acaba de aprovar - e o Senado o fará proximamente - mecanismos absolutamente antagônicos embutidos no texto de medidas provisórias. No primeiro caso, o governo editou MP que regulamentou a criação das Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs), um clássico instrumento para promover a guerra fiscal entre os Estados. Para agravar a situação, o texto aprovado vai propiciar uma concorrência desleal entre essas zonas, que gozarão de isenção fiscal, e o conjunto das empresas brasileiras, que sofrem com o custo Brasil, pois 20% da sua produção poderá ser destinada ao mercado interno, o que representa também um desvirtuamento dos seus objetivos. A incoerência do governo é ainda maior porque ele introduziu na MP dispositivos vetados pelo presidente na lei que criou as ZPEs. Ou seja, o veto foi aposto para evitar distorções, mas, sete meses após, o mesmo governo cedeu às pressões de sua base parlamentar, gerando um verdadeiro mostrengo.
No segundo caso, o governo permitiu e estimulou a introdução de todo um novo capítulo tributário na MP que alterava o PIS e a Cofins incidentes na cadeia produtiva do álcool para mudar a tributação sobre as chamadas "bebidas frias" - especialmente refrigerantes e cervejas. Aqui se promoveu um notável retrocesso, com conseqüências negativas sobre a eficácia arrecadatória, ao possibilitar o cálculo do imposto pelo sistema "ad valorem", e não apenas no sistema "ad rem", este, no caso desse setor, muito mais moderno e inibidor da sonegação. Seria um mero detalhe técnico se não incidisse sobre uma parcela importante da arrecadação federal, de cerca de R$ 4 bilhões.
Ao lado dessas iniciativas, já transformadas em textos de propostas legislativas, o governo anunciou o Plano de Desenvolvimento Produtivo, que, em essência, consiste num conjunto de incentivos seletivos fiscais mediante isenções tributárias para alguns setores econômicos, sem atacar os verdadeiros gargalos que atrofiam o crescimento econômico. Faria melhor para o crescimento econômico se tivesse optado por uma redução horizontal da carga tributária, estendida ao conjunto do parque produtivo.
Por fim, nos últimos dias o presidente Lula colocou a espada de Dâmocles sobre a cabeça da Câmara dos Deputados, no caso da regulamentação da Emenda 29, que garante os recursos para a saúde. Pela proposta aprovada no Senado, destinam-se R$ 36 bilhões adicionais à saúde ao final da transição, em quatro anos. Agora, para que seja aprovada pela Câmara, o governo quer que o Parlamento assuma o ônus de recriar a CPMF, ou amplie outros impostos, para que seja atendida a reivindicação de mais verbas para a saúde. No fundo, o governo quer mesmo o aumento da carga tributária, mas sem sofrer o desgaste perante a sociedade. Trata-se de uma jogada esperta, em que o governo ficaria com o bônus - no caso, o aumento de sua arrecadação - sem arcar com o ônus - o desgaste perante a opinião pública. Isso não é necessário. Bastaria o governo tomar duas medidas essenciais: cortar seus gastos supérfluos e destinar o excesso de arrecadação ao que é prioritário - o financiamento da saúde. Este excesso não é nada desprezível, porque a previsão atual é que em 2008 a arrecadação ultrapasse em R$ 18 bilhões o que foi projetado no Orçamento, apesar do fim da CPMF.
Todas essas medidas pontuais e desarticuladas deveriam fazer parte de um todo coerente na proposta de reforma tributária, que só neste ano o governo encaminhou ao Congresso Nacional, deixando de fazê-lo logo após a reeleição de Lula, que era o momento mais favorável. Em todos esses casos o governo cedeu a pressões de grupos de interesses, que, por legítimos que sejam, representam visões parciais e contraditórias na sociedade. Assim, também na esfera tributária o governo petista se afasta cada vez mais da impessoalidade necessária à fixação de normas públicas e se aproxima da discricionariedade das políticas de incentivo a setores benquistos.