Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 25, 2008

FERREIRA GULLAR Perigosas veredas


Com apenas 20 anos, poeta e locutor de rádio, nunca me metera em tamanha encrenca

NA CASA da prefeita Noca Santos -que tinha um alto-falante na fachada, voltado para a rua sem calçamento- peguei o microfone e iniciei meu discurso. Estávamos a um mês das eleições e o nosso candidato a senador, José Neiva, cunhado da prefeita, concorria com o principal fazendeiro da região, cujo nome esqueci, que era gago e feroz; quem se atrevia a enfrentá-lo morria em emboscadas e se tornava comida de porcos selvagens, que ele criava, num fosso, nos limites de seu latifúndio.
Era o que diziam. Sem saber disso e de quase nada daquele universo sertanejo, aceitara o convite do senador para trabalhar por sua reeleição no agreste maranhense. Levei um susto quando, ao fim daquele meu discurso, ouvi tiros disparados contra o alto-falante, seguido do barulho de um jipe em disparada.
Foi na manhã seguinte que me apresentaram Quinca Bonfim, recém-chegado para integrar-se à batalha eleitoral. Quando ria, mostrava uma obturação de ouro na boca e, nos olhos, um brilho que me parecia cruel. Era alto, forte, não teria 30 anos e vestia um conjunto de calças e blusão cáqui, com botas marrons, lustradas. Também me chamou a atenção a caneta Parker 51 que exibia no bolso do blusão, coisa fina e moderna, como os óculos sem aro que usava, inesperados na figura de um pistoleiro, conhecido por sua valentia e rudeza. De qualquer modo, olhei com simpatia, já que ele estava ali para nos proteger.
Logo depois, veio outro, que atendia pelo apelido de Baiano e se vestia como qualquer caboclo. Era calado, quase não ria, mas seu olhar não refletia qualquer crueldade. Dormia no mesmo quarto que eu e passava um bom tempo sentado na rede a limpar e azeitar o revólver que trazia numa espécie de bolsa presa à cintura, nas costas.
A contratação de Quinca Bonfim e Baiano era condição necessária para que a campanha da oposição se realizasse, uma vez que o governo estadual havia enviado, sem qualquer constrangimento, para aquela região, um destacamento da polícia militar, cujo comandante era um capitão, que cruzava a cidade, para cima e para baixo, num jipe sem capota com dois soldados armados. Fazia questão de deixar clara sua intenção de impedir qualquer manifestação pública em favor dos candidatos oposicionistas. À noite, estacionava o jipe numa esquina, próxima à casa da prefeita, e ligava o rádio bem alto para que todos ouvissem a propaganda transmitida por uma rádio oficial. O objetivo era também atemorizar os eleitores que, na sua ampla maioria, votavam com a prefeita Noca Santos e no seu cunhado, José Neiva. Certo dia, numa conversa sobre essa situação, Quinca disse à prefeita:
-Se a senhora me der ordem, mando esse capitão pro inferno.
-Ele bem que merece -respondeu ela- mas isso só ia piorar as coisas para nós. A hora ainda não é esta.
Eu era um elemento estranho em meio àquela guerra, que se desenrolava à margem da lei ou, se dentro da lei, sem temer violá-la se necessário fosse. Tanto um lado quanto o outro estava consciente disso e, não obstante, disposto a levar adiante a campanha eleitoral e vencer as eleições, custasse o que custasse. Com apenas 20 anos de idade, poeta e locutor de rádio, nunca me metera em tamanha encrenca e jamais supusera, ao aceitar o convite para trabalhar naquela campanha eleitoral, que isso significava pôr minha vida em risco. E só tomei plena consciência do perigo no dia em que, desafiando as ameaças do capitão, a prefeita decidiu rumar para Sucupira onde se realizaria um grande comício da oposição. Eu, Baiano e mais umas 20 pessoas subimos na carroceria de um caminhão, em cuja boléia ia a prefeita. Mal tomamos a estrada, já fora da cidade, passou por nós o capitão em seu jipe, com quatro soldados armados de fuzil e parou à nossa frente, uns 20 metros adiante. O caminhão freou bruscamente, enquanto os soldados desceram do jipe e apontaram as armas em nossa direção. Neste momento, Baiano sacou o revólver e ameaçou atirar contra eles, que logo voltaram para o jipe, que arrancou e sumiu na curva próxima. Foi um susto grande e dona Noca, temendo que eles nos emboscassem em algum ponto da estrada, desistiu de seguir viagem. "Zelo pela vida de vocês", murmurou ela, "não pela minha".
Apesar desses e outros atropelos, ganhamos as eleições, sem que ninguém morresse. Mas, por ironia da sorte, Quinca Bonfim, numa festa em que se comemorava a vitória, foi morto por um primo seu, que bebera demais aquela noite. Como se vê, quase 60 anos depois, o sertão não é mais nem menos perigoso hoje do que ontem.

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