Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 25, 2008

Gaudêncio Torquato O passado diante e adiante de nós

"Que o passado esteja diante de nós, vá lá... Mas o passado adiante de nós, sai pra lá." A expressão artística é do poeta Carlos Ayres Britto. E o saber semântico-filosófico é do jurista de mesmo nome, ministro do Supremo Tribunal Federal. A sentença desse sergipano que assumiu, recentemente, a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) retrata, à perfeição, o dualismo que impregna a cultura política do País e cujos vetores darão empuxo à gigantesca onda eleitoral que banhará a sociedade até outubro. Cerca de 128 milhões de eleitores serão convocados a cumprir o dever cívico de eleger 5.564 prefeitos e um número aproximado de 50 mil vereadores, optando por abrigar um passado (vá lá...) ou decidindo desviá-lo da rota do futuro (sai pra lá...). O passado estará diante de nós sob a forma de perfis carcomidos, vidas pregressas cercadas de processos na Justiça, métodos corruptos para conquista do voto, propostas indecentes, mirabolantes e inconsistentes, que comporão a agenda eleitoral. Infelizmente, não serão poucos os perfis do passado que continuarão "adiante de nós", apesar da energia cívica do ministro Ayres Britto para conter o ímpeto das correntes poluidoras.

Será possível conter a avalanche das ilicitudes sobre o processo eleitoral? Não. As múltiplas formas de corrupção que cercam uma campanha acabam driblando o olhar da Justiça ou diminuindo sua força. Apesar dos controles e dos inúmeros casos que bateram às portas do Judiciário nos últimos anos, parcela dos candidatos se valerá do caixa 2. Muitos prefeitos candidatos à reeleição abusarão do poder do cargo. A própria continuidade na função tem o condão de arrebanhar eleitores. Ao formidável aparato de forças, métodos e formas escusas para atrair o eleitor se agrega um número considerável de candidatos de "ficha suja". E é nessa seara que o ministro Ayres Britto planta uma semente de esperanças quando promete mais ativismo judiciário para alertar os protagonistas do processo eleitoral, candidatos, partidos e eleitores. Os partidos deverão ser lembrados de que, se querem a fidelidade do eleitor, terão, em primeiro lugar, de ser fiéis a si mesmos, ou seja, ao seu programa. Para tanto urge apresentá-los. Quanto ao eleitor, há de ser motivado a não transigir no exercício de sua responsabilidade, sob o argumento de que o voto é a principal arma de que dispõe para qualificar a vida política.

Mas a manifestação mais eloqüente do novo presidente do TSE, equivalente a um jorro de ar fresco no mormaço da velha política, foi o posicionamento sobre candidatos às voltas com a Justiça. Mesmo sob a rígida interpretação da Lei da Inelegibilidade (Lei Complementar 64/90), pela qual apenas candidatos condenados em processos criminais com sentença transitada em julgado podem ser barrados, Ayres Britto levanta a hipótese de punição para quem se mostre, de alguma forma, pelo menos no campo da presunção, como transgressor da ordem jurídica. Apesar de polêmica, a idéia impregna-se do simbolismo do espírito aguerrido de Zaratustra, o profeta de Nietzsche, gritando no cume da montanha para fazer descer sua voz sobre a placidez dos vales: "Novos caminhos sigo, uma nova fala me empolga; cansei-me das velhas línguas. Não quer mais o meu espírito caminhar com solas gastas." Sim, diz o ministro, um candidato de vida pregressa plena de desvios pode ser inelegível. E exibe a força do argumento: os princípios constitucionais do direito coletivo, entre os quais o da soberania popular e a delegação para ser representado, devem sobrepor-se aos direitos individuais, como o princípio da não-culpabilidade.

Não por acaso se inseriu na Carta de 88 (artigo 14, § 9º) uma cláusula com a finalidade de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato. Além disso, há referência explícita à vida pregressa do candidato. A abordagem interpretativa feita pelo presidente do TSE sugere que possa ser adotada por interessado em questionar a condição de certas candidaturas. É animador ouvir a autoridade da mais alta Corte eleitoral proclamar o compromisso de impedir e até mesmo dificultar as oligarquias partidárias. E ainda lutar para incorporar "mais saldos de boas novidades à democracia, visando a um processo cumulativo de qualificação". Diante do exposto, surge a indagação: haverá tempo para se aplicar mais rigor no vestibular eleitoral que se aproxima? Sim. O ministro Ayres Britto pode começar com uma canetada de tinta forte para demonstrar que está empenhado em consolidar os eixos da ordem moral e do progresso ético do sistema eleitoral. Deve acreditar em sua capacidade de inovar e na acuidade visual e interpretativa para aclarar os horizontes mentais dos atores políticos. Não pode recuar de sua tese. O passado recente recomenda a S. Exa. que não hesite em usar uma borracha do tamanho do Produto Nacional Bruto da Corrupção.

O contingente de candidatos também pode integrar o mutirão moralizador. Prefeito que deseja se reeleger deveria tirar licença do cargo. Até para se livrar da liturgia do Poder Executivo e vestir, sem injunções, o manto da candidatura. E todos, sem exceção, dariam contribuição à causa da renovação política com a incorporação de um curto ideário:

Melhorar e ajustar os programas existentes, antes de partir para novas grandes ações;

restringir-se à plataforma que possa ser efetivamente cumprida;

realizar coisas que sejam absolutamente prioritárias para o bem-estar e o progresso da coletividade.

Dos partidos se exigem esforço e atenção para selecionar candidatos que não sejam visitantes contumazes de delegacias de polícia e tribunais. Dos eleitores, talvez um colírio para limpar a vista caia bem. E dos ministros do TSE rogamos a Deus que pensem como seu presidente: "Falam tanto nesse tal de ?custo Brasil? e eu cada vez mais preocupado com o casto Brasil."

P.S. - A morte do senador Jefferson Péres (PDT-AM) deixa o Brasil menos casto.

Arquivo do blog