Com que asas o país vai voar?
Metade do corpo está no Primeiro Mundo, mas parte do Brasil
ainda veste as calças curtas do subdesenvolvimento
Giuliano Guandalini
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A adolescência é a etapa do desenvolvimento humano que marca a passagem da dependência infantil para a auto-suficiência adulta. Aplicado ao estágio de desenvolvimento das nações, o conceito define com perfeição os países situa-dos entre as calças curtas do subdesenvolvimento e a maturidade institucional, que se comportam ora como criança, ora como adulto. É justamente aí, nessa espécie de encruzilhada, que se encontra o Brasil atual. Graças a um incrível avanço institucional e a uma rara coincidência de fatores, o país despontou no cenário internacional com suas exportações diversificadas, o sucesso do etanol e a conquista recente do grau de investimento, distinção concedida às economias classificadas como sólidas e confiáveis. Mas o Brasil ainda atravessa as dicotomias típicas de um adolescente, cada vez mais visíveis. Produz aviões a jato, mas também mosquitos da dengue. A mesma sociedade que exporta as modelos mais bem pagas do mundo fornece garotas a bordéis de todo o planeta. O ensino que permitiu ao país explorar petróleo a 7000 metros de profundidade aparece em último lugar no ranking internacional de matemática e na penúltima posição em ciências, na comparação feita pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) entre quarenta países.
Contradições como essas decorrem justamente da fase de transição em que se encontra o Brasil. O país tem um pé no Primeiro Mundo e outro no subdesenvolvimento, como mostram os cinqüenta exemplos que acompanham esta matéria. Qual Brasil prevalecerá? O das asas da Embraer ou aquele das asas do mosquito da dengue? O do etanol de cana-de-açúcar ou o do trabalho escravo no campo? O da abertura comercial ou o da fobia de importações? O Brasil nunca teve tantas possibilidades de definir seu próprio futuro, afirmam os economistas Octavio de Barros, diretor de pesquisas macroeconômicas do Bradesco, e Fabio Giambiagi na apresentação de Brasil Globalizado(Campus/Elsevier; 424 páginas; 79,90 reais), que chega às livrarias nesta semana: "A primeira opção é limitar-se a acumular avanços econômicos e perpetuar a tensa coexistência entre o Brasil de Primeiro Mundo e o Brasil de Terceiro Mundo. A outra, que nos parece mais atraente, é estreitar mais rapidamente a distância que o separa do Primeiro Mundo". Organizado por Barros e Giambiagi, o livro recebeu a colaboração de 22 economistas (entre outros, Claudio Haddad, Affonso Celso Pastore e Luciano Coutinho), além da do sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Em seus onze capítulos, prefaciados por Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, o estudo tem como substrato justamente a inserção do país no mundo capitalista contemporâneo e as contradições que esse processo levanta. O livro parte do pressuposto de que o cenário raro de bonança mundial, por sua intensidade, proporcionou ao Brasil um bilhete de loteria premiado. O país foi um dos maiores beneficiados pelo aumento da demanda – e do preço – de produtos como minério de ferro, soja e carne. China, Índia e outros países de crescimento acelerado encontraram aqui um celeiro indispensável. Graças a esse vento favorável, a economia brasileira acumulou, nos últimos cinco anos, um saldo total de 200 bilhões de dólares em sua balança comercial. Com esse "prêmio", o país pagou sua dívida externa, engordou suas reservas em moeda forte e conquistou credibilidade para o real. Esse avanço se deu antes mesmo de o país instalar controles sanitários eficientes, cortar os gastos públicos e conter a impunidade. É como se o Brasil de Primeiro Mundo, para emergir, tivesse simplesmente se desviado dos obstáculos de Terceiro Mundo, sem desfazê-los.
Os resultados foram, até aqui, auspiciosos, mas insuficientes:
• O Brasil segue como a economia mais fechada do planeta e foi uma das que menos se abriram nas últimas três décadas (veja o quadro).Diz Claudio Haddad, presidente do Ibmec São Paulo: "O aumento do protecionismo nos países desenvolvidos, mesmo que aconteça, não deve servir de pretexto para que o Brasil faça o mesmo".
• Se quiser trilhar a história de sucesso dos países asiáticos, o Brasil terá de poupar mais. Como afirma Pastore no capítulo que escreve com Maria Cristina Pinotti e Leonardo Porto de Almeida, a taxa de poupança brasileira é das menores do mundo. Por isso, faltam recursos para ampliar os investimentos e aumentar o potencial de crescimento. Sempre que o país passa a crescer mais rápido, acaba importando poupança estrangeira. O risco, dizem os autores, é aprofundar o déficit nas contas externas. Como contornar isso? Diminuindo os gastos do governo, o que elevaria a poupança pública e ampliaria o capital disponível para investimentos.
• Apesar da queixa em relação ao câmbio, os fatores que, de fato, solapam a competitividade das empresas brasileiras são a burocracia, a carga fiscal, o custo trabalhista e a péssima infra-estrutura. Sem corrigir essas distorções, o país seguirá concorrendo de maneira desigual com seus adversários no comércio global.
• O acesso à educação cresceu rapidamente na última década. Falta agora ampliar os esforços na qualidade, para que os trabalhadores sejam capazes de produzir mercadorias e serviços mais elaborados. Isso inclui não apenas o ensino fundamental, mas também a pesquisa científica.
• Fundamental, afirmam todos os autores do livro, será não regredir nas conquistas macroeconômicas obtidas até aqui e preservar o tripé de combate à inflação, câmbio flutuante e superávit fiscal primário.
Ganhar na loteria é sempre bom. Ainda mais quando o prêmio é bem aproveitado. Mas pode-se também desperdiçar o bilhete premiado da noite para o dia, como mostram os exemplos da Venezuela e da Argentina, dois países que, como o Brasil, foram beneficiados pela alta do preço de commodities e se afundaram na lama do populismo. Que os exemplos tristes dos países vizinhos sirvam de lição. O mundo conspira a favor do Brasil, mas o jogo ainda não foi ganho. Como dizem os organizadores do livro, a idéia de que estamos predestinados ao êxito é certamente um erro – mas nunca antes o destino sorriu tanto para o Brasil.