por que o Brasil teme mais a inteligência do que a corrupção?
Às vezes, leitor, mesmo indo alta a madrugada, consegue-se, ainda na escuridão, um tanto de luz com que ver o futuro. Leio na edição eletrônica da Folha desta quinta, dia 12, um texto bem interessante sobre os números do Datafolha (clique aqui), e me ocorre que precisamos de intelectuais que pensem a crise das elites no Brasil. Recorram à etimologia. A palavra "elite" designa “o que há de melhor”, a excelência. Escarafunchando o latim, encontra-se na sua raiz as palavras “eleger” e “eleito”.
Por que o texto sobre a pesquisa do Datafolha me levou a tal questão? Ali se lê: “No geral, o tucano [Geraldo Alckmin] consegue uma fatia maior de eleitores que o vê como ‘o mais inteligente’ -51%, contra 34% que atribuem essa característica a Lula- e ‘o mais moderno e inovador’ -45%, contra 39% para Lula. Já entre os que assistiram ao debate, aumenta a proporção dos que consideram Alckmin o mais inteligente -chegando a 54%, enquanto Lula oscila um ponto, para 35%.”
Mas também somos apresentados aos seguintes dados: “Segundo a pesquisa Datafolha realizada na terça-feira, uma fatia maior de eleitores considera Alckmin o candidato ‘mais autoritário’ (44%, contra 36% para Lula) e ‘que mais defenderá os ricos, se eleito’ (59%, contra 17% de Lula). Quando considerados apenas os que assistiram ao debate, no entanto, aumenta a proporção dos que consideram o tucano o mais autoritário (50%, contra os mesmos 36% de Lula). Ainda neste grupo, também aumenta a fatia dos que consideram o candidato do PSDB ‘o que mais defenderá os ricos’ (62%, contra 16% para Lula). Um efeito semelhante ocorre com Lula na percepção de corrupção. No total de entrevistados, 35% consideram o petista ‘o mais corrupto’, contra 20% que consideram Alckmin como tal. Entre os que viram o debate, 40% acham Lula ‘o mais corrupto’, e 22%, Alckmin.”
Estamos diante de um quadro desolador. Como não considerar relevante que o eleitor veja no candidato “mais inteligente” e “menos corrupto” também “o que mais defende os ricos” e “o mais autoritário”? Nada nos permite concluir que haja uma relação de causa e efeito aí. Mas não podemos ignorar, quando menos, a atribuição de uma correlação. A inteligência e, vá lá, a ética mais atilada são postas, vejam vocês, no mesmo cadinho em que são lançados o autoritarismo e a insensibilidade social. Lula, em contraste, mesmo visto como menos inteligente e mais corrupto, seria, no entanto, mais favorável aos pobres e... mais democrático!
Pode-se ou não concordar que Alckmin seja um bom representante da “elite” no sentido do “melhor que se pode ter de um grupo”. Mas, dadas as opções, é assim que o vê o eleitorado. E, no entanto, hoje, ele perderia a disputa. É bom lembrar que só se tornou um candidato competitivo porque o dossiê despertou uma onda de rejeição aos métodos do PT, um tiro no pé que o partido deu à boca da urna. Não fosse isso, o pleito teria sido decidido no primeiro turno. Sim, há algo de profundamente errado com as nossas “elites”, com os “melhores” de nós. Não se trata, evidentemente, de empregar ao termo naquele sentido bronco, burro, habitualmente manipulado pelo PT. Ao petismo interessa que “elite” seja o antônimo de povo — distopia a que finalmente chegamos, dada a clivagem eleitoral que se vê no país e que Lula tão habilmente explora.
Fiquei aqui, nesta madrugada quente, a pensar: “Mas por que diabos o eleitor consegue ver na mesma personagem mais inteligência e mais autoritarismo; o menos corrupto, mas também o mais favorável aos ricos?” Se Lula fosse o líder de uma revolução social — revolução mesmo, daquelas em que se mata e se morre —, tal questão seria irrelevante. Qualquer hierarquia de valores é relativa numa poça de sangue. Mas ele não é. Trata-se apenas do representante de uma nova classe social — formada pelo que costumo chamar de “burgueses do capital alheio” —, que manipula habilmente os signos do chamado “poder popular”. Lula não chega a ser um teórico da economia da pobreza, e sim do “pobrismo”. Ele não promove, à diferença do que se diz, uma redistribuição de renda: sob o seu reinado, a classe média ficou mais pobre para que os pobres ficassem mais perto da classe média.
Mas uma coisa ele sabe fazer com rara maestria: satanizar e desmoralizar os valores das “elites” — não das elites econômicas, como supõe alguns tontos da USP. Mas justamente as “elites” entendidas como “os melhores”. Sob o império do lulismo, o mérito desaparece, e qualquer distinção se torna fruto de uma trapaça. Nesse sentido, Lula está MENOS perto do comunismo, de que se quer um herdeiro contemporâneo e “aggiornado”, do que do fascismo. Explico-me: os comunistas ainda aspiravam a uma certa visão aristocrática, distintiva, da classe operária. Lula açula a república dos açougueiros morais. O instrumento de sua luta de classes é o cutelo que decepa reputações. Lula inspira o ódio à inteligência e a qualquer forma de tradição.
Por culpa dele? Sim, certamente: ele é o agente dessa fantasmagoria, ancorado num partido que, sem prejuízo de sua retórica universalista, é pobremente fascitóide e corporativista. Mas também por culpa nossa, das “elites”. Não temos sabido — especialmente os partidos políticos (ou, vá lá, “lideranças políticas”) que não comungam dessa escatologia autoritária — fazer a devida guerra de valores. Ao contrário. A cada dia, cedemos mais à razão dos nossos “inimigos”. Quais “inimigos”? De classe? Ora, é claro que não. Olavo Setúbal, do Itaú, por exemplo, já afirmou que, para ele, serve qualquer um dos dois “conservadores” — Lula ou Alckmin. Falo dos inimigos do mérito.
Reparem a facilidade com que, hoje em dia, lideranças do PSDB e mesmo do PFL pretendem disputar com o PT valores que se dizem de centro-esquerda. Vejam a facilidade com que o “discurso do social”, sem que se especifique exatamente que diabo isso quer dizer, se torna pauta obrigatória dos partidos — ainda que esta “agenda” não respeite a lei. Os petistas que espinafram Alckmin ignoram que o governo de São Paulo atuou, por exemplo, em parceria com o MST no Pontal do Paranapanema. Quando um tucano quer demonstrar que os petistas não são monopolistas do bem, costumam se dizer, vejam só, até “mais esquerdistas do que Lula”. Que diabo isso quer dizer? Desde quando ser “de esquerda” credencia alguém para a democracia se a história da esquerda é justamente a da superação dos valores democráticos como mera etapa da “verdadeira liberdade”? As elites brasileiras perderam a vontade de ser um exemplo. Querem disputar, no terreiro do populismo, um lugar no festim promovido por petistas e assemelhados.
Ocorre que esse “lugar” da permanente reivindicação e do discurso do igualitarismo está congestionado. Qualquer um que tente ocupá-lo sem o selo de qualidade fornecido pelo próprio petismo será logo escorraçado, visto como um estranho, como alguém de fora, sem legitimidade para participar da disputa. As “elites do mérito”, em vez de se ocupar, então, de seus valores, voltando-se para alguns elementos que estão na fundação da convivência social civilizada, tornam-se meras caudatárias dessa demagogia e desse pobrismo. E evitam o debate e o confronto como o diabo foge da cruz.
Não é que o povo, como se vê, não saiba distinguir a inteligência da burrice, a corrupção da honestidade. Ele sabe. Mas, por desídia das elites, considera que a inteligência e a honestidade podem não ser seus melhores aliados. Nessa hora, é claro que estamos, como país, dando uma piscadela para o caos. Voltarei a esse tema outras vezes. Por que diabos este país tem mais medo da inteligência do que da corrupção?
Por que o texto sobre a pesquisa do Datafolha me levou a tal questão? Ali se lê: “No geral, o tucano [Geraldo Alckmin] consegue uma fatia maior de eleitores que o vê como ‘o mais inteligente’ -51%, contra 34% que atribuem essa característica a Lula- e ‘o mais moderno e inovador’ -45%, contra 39% para Lula. Já entre os que assistiram ao debate, aumenta a proporção dos que consideram Alckmin o mais inteligente -chegando a 54%, enquanto Lula oscila um ponto, para 35%.”
Mas também somos apresentados aos seguintes dados: “Segundo a pesquisa Datafolha realizada na terça-feira, uma fatia maior de eleitores considera Alckmin o candidato ‘mais autoritário’ (44%, contra 36% para Lula) e ‘que mais defenderá os ricos, se eleito’ (59%, contra 17% de Lula). Quando considerados apenas os que assistiram ao debate, no entanto, aumenta a proporção dos que consideram o tucano o mais autoritário (50%, contra os mesmos 36% de Lula). Ainda neste grupo, também aumenta a fatia dos que consideram o candidato do PSDB ‘o que mais defenderá os ricos’ (62%, contra 16% para Lula). Um efeito semelhante ocorre com Lula na percepção de corrupção. No total de entrevistados, 35% consideram o petista ‘o mais corrupto’, contra 20% que consideram Alckmin como tal. Entre os que viram o debate, 40% acham Lula ‘o mais corrupto’, e 22%, Alckmin.”
Estamos diante de um quadro desolador. Como não considerar relevante que o eleitor veja no candidato “mais inteligente” e “menos corrupto” também “o que mais defende os ricos” e “o mais autoritário”? Nada nos permite concluir que haja uma relação de causa e efeito aí. Mas não podemos ignorar, quando menos, a atribuição de uma correlação. A inteligência e, vá lá, a ética mais atilada são postas, vejam vocês, no mesmo cadinho em que são lançados o autoritarismo e a insensibilidade social. Lula, em contraste, mesmo visto como menos inteligente e mais corrupto, seria, no entanto, mais favorável aos pobres e... mais democrático!
Pode-se ou não concordar que Alckmin seja um bom representante da “elite” no sentido do “melhor que se pode ter de um grupo”. Mas, dadas as opções, é assim que o vê o eleitorado. E, no entanto, hoje, ele perderia a disputa. É bom lembrar que só se tornou um candidato competitivo porque o dossiê despertou uma onda de rejeição aos métodos do PT, um tiro no pé que o partido deu à boca da urna. Não fosse isso, o pleito teria sido decidido no primeiro turno. Sim, há algo de profundamente errado com as nossas “elites”, com os “melhores” de nós. Não se trata, evidentemente, de empregar ao termo naquele sentido bronco, burro, habitualmente manipulado pelo PT. Ao petismo interessa que “elite” seja o antônimo de povo — distopia a que finalmente chegamos, dada a clivagem eleitoral que se vê no país e que Lula tão habilmente explora.
Fiquei aqui, nesta madrugada quente, a pensar: “Mas por que diabos o eleitor consegue ver na mesma personagem mais inteligência e mais autoritarismo; o menos corrupto, mas também o mais favorável aos ricos?” Se Lula fosse o líder de uma revolução social — revolução mesmo, daquelas em que se mata e se morre —, tal questão seria irrelevante. Qualquer hierarquia de valores é relativa numa poça de sangue. Mas ele não é. Trata-se apenas do representante de uma nova classe social — formada pelo que costumo chamar de “burgueses do capital alheio” —, que manipula habilmente os signos do chamado “poder popular”. Lula não chega a ser um teórico da economia da pobreza, e sim do “pobrismo”. Ele não promove, à diferença do que se diz, uma redistribuição de renda: sob o seu reinado, a classe média ficou mais pobre para que os pobres ficassem mais perto da classe média.
Mas uma coisa ele sabe fazer com rara maestria: satanizar e desmoralizar os valores das “elites” — não das elites econômicas, como supõe alguns tontos da USP. Mas justamente as “elites” entendidas como “os melhores”. Sob o império do lulismo, o mérito desaparece, e qualquer distinção se torna fruto de uma trapaça. Nesse sentido, Lula está MENOS perto do comunismo, de que se quer um herdeiro contemporâneo e “aggiornado”, do que do fascismo. Explico-me: os comunistas ainda aspiravam a uma certa visão aristocrática, distintiva, da classe operária. Lula açula a república dos açougueiros morais. O instrumento de sua luta de classes é o cutelo que decepa reputações. Lula inspira o ódio à inteligência e a qualquer forma de tradição.
Por culpa dele? Sim, certamente: ele é o agente dessa fantasmagoria, ancorado num partido que, sem prejuízo de sua retórica universalista, é pobremente fascitóide e corporativista. Mas também por culpa nossa, das “elites”. Não temos sabido — especialmente os partidos políticos (ou, vá lá, “lideranças políticas”) que não comungam dessa escatologia autoritária — fazer a devida guerra de valores. Ao contrário. A cada dia, cedemos mais à razão dos nossos “inimigos”. Quais “inimigos”? De classe? Ora, é claro que não. Olavo Setúbal, do Itaú, por exemplo, já afirmou que, para ele, serve qualquer um dos dois “conservadores” — Lula ou Alckmin. Falo dos inimigos do mérito.
Reparem a facilidade com que, hoje em dia, lideranças do PSDB e mesmo do PFL pretendem disputar com o PT valores que se dizem de centro-esquerda. Vejam a facilidade com que o “discurso do social”, sem que se especifique exatamente que diabo isso quer dizer, se torna pauta obrigatória dos partidos — ainda que esta “agenda” não respeite a lei. Os petistas que espinafram Alckmin ignoram que o governo de São Paulo atuou, por exemplo, em parceria com o MST no Pontal do Paranapanema. Quando um tucano quer demonstrar que os petistas não são monopolistas do bem, costumam se dizer, vejam só, até “mais esquerdistas do que Lula”. Que diabo isso quer dizer? Desde quando ser “de esquerda” credencia alguém para a democracia se a história da esquerda é justamente a da superação dos valores democráticos como mera etapa da “verdadeira liberdade”? As elites brasileiras perderam a vontade de ser um exemplo. Querem disputar, no terreiro do populismo, um lugar no festim promovido por petistas e assemelhados.
Ocorre que esse “lugar” da permanente reivindicação e do discurso do igualitarismo está congestionado. Qualquer um que tente ocupá-lo sem o selo de qualidade fornecido pelo próprio petismo será logo escorraçado, visto como um estranho, como alguém de fora, sem legitimidade para participar da disputa. As “elites do mérito”, em vez de se ocupar, então, de seus valores, voltando-se para alguns elementos que estão na fundação da convivência social civilizada, tornam-se meras caudatárias dessa demagogia e desse pobrismo. E evitam o debate e o confronto como o diabo foge da cruz.
Não é que o povo, como se vê, não saiba distinguir a inteligência da burrice, a corrupção da honestidade. Ele sabe. Mas, por desídia das elites, considera que a inteligência e a honestidade podem não ser seus melhores aliados. Nessa hora, é claro que estamos, como país, dando uma piscadela para o caos. Voltarei a esse tema outras vezes. Por que diabos este país tem mais medo da inteligência do que da corrupção?