com a bomba
O ditador norte-coreano Kim Jong-Il
fez seu primeiro teste nuclear e pode
desencadear uma corrida armamentista
se a ONU não o punir como exemplo
Denise Dweck
Montagem sobre foto de Yao Dawei/AFP |
Kim Jong-Il: o cabelo espetado não foi efeito da explosão |
A Coréia do Norte testou sua bomba nuclear no domingo 8. A comunidade internacional reagiu com furor, num raro consenso de que o regime de Pyongyang deve ser punido pela ousadia. Como fazer isso é outra história. Exceto pelo Japão, que cortou de imediato o comércio bilateral, é difícil um acordo sobre a resposta adequada. Na sexta-feira passada, o Conselho de Segurança das Nações Unidas examinava uma resolução impondo sanções econômicas à Coréia do Norte. Proposto pelos Estados Unidos, o texto é relativamente ameno (não sugere ações militares, por exemplo), mas a China e a Rússia ainda querem mais tempo para negociações diplomáticas. O que se tem agora são dois problemas num só. O primeiro, mais geral, diz respeito à proliferação de armas nucleares – os entraves existentes simplesmente não estão funcionando. O segundo é a Coréia do Norte propriamente dita. Ninguém sabe a que grau de insanidade os caciques desse país miserável e sem amigos estão dispostos para manter em pé seu modelo excêntrico de comunismo.
Não se deve confundir a aparência amalucada de Kim Jong-Il, o ditador norte-coreano, com falta de determinação. Seu cabelo pintado é penteado em forma de penacho. Usa saltos altos para disfarçar a pouca altura. Ele é tratado como "Estimado Líder" (seu pai, de quem herdou o poder, era o "Grande Líder"). Há uma década, o ditador usa com habilidade seu programa nuclear para obter vantagens dos Estados Unidos, do Japão e da Coréia do Sul. A estratégia transformou seu país no maior receptor de ajuda internacional em alimentos. Para acalmá-lo, o Japão aumentou o comércio bilateral e fez por lá alguns investimentos. A Coréia do Sul adotou uma política de aproximação e ajuda econômica chamada de "Raio de Sol". A China, o único amigo do regime norte-coreano, fez o que pôde para convencê-lo a moderar o comportamento.
Há algumas explicações para, apesar de todos esses benefícios, Kim Jong-Il ter decidido desafiar a comunidade internacional. A primeira é a hostilidade do presidente americano George W. Bush, que o identifica como um dos vértices do eixo do mal. É fácil imaginar o susto que a deposição de Saddam Hussein causou em Pyongyang. O regime norte-coreano vive um dilema causado pelo próprio anacronismo. Mesmo que disso dependa sua sobrevivência, não tem coragem sequer de cogitar de uma abertura econômica sob o rígido controle do Partido Comunista, como fez a vizinha China. Prefere rugir e ameaçar os vizinhos. Em julho, já tinha demonstrado seus maus modos com testes de mísseis capazes de atingir o Japão.
Morteza Nikoubazl/Reuters |
O presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad: ele também quer a bomba |
O que fazer? Sanções econômicas não dão bons resultados contra regimes fora-da-lei. A possibilidade de os chineses cortarem o envio de comida para a Coréia do Norte teria efeitos desastrosos para a população – metade dos alimentos consumidos no país vem da China –, mas isso não parece preocupar o governo norte-coreano. "Kim Jong-Il não vai desistir da bomba porque acredita que a sobrevivência de seu regime depende da demonstração de força", disse a VEJA o historiador americano Ted Galen Carpenter, autor do livro O Enigma Coreano. Uma ação militar é impensável. Não há como os Estados Unidos localizarem e destruírem todas as instalações nucleares norte-coreanas. Em caso de guerra, Seul, a capital sul-coreana, localizada a 50 quilômetros da cerca que divide as duas Coréias, seria facilmente arrasada pela artilharia norte-coreana.
O teste subterrâneo realizado a 110 quilômetros da fronteira com a China foi registrado pelos sismógrafos como muito fraco, colocando em dúvida a qualidade da bomba nuclear norte-coreana ou até mesmo sua existência. De qualquer forma, o artefato deve ser grande e pesado. Serão necessários alguns anos de trabalho para que seja reduzido de forma a caber num míssil de longo alcance. No momento, o maior perigo é o mau exemplo. A experiência norte-coreana e a reação internacional ao desafio estão sendo acompanhadas atentamente pelos aiatolás do Irã, outro regime fora-da-lei ansioso por se armar com ogivas nucleares. Entre todos os países que realizaram testes nucleares, apenas a África do Sul desistiu da bomba atômica. Em vão, Estados Unidos, China, Rússia, Inglaterra e França – os sócios originais do clube atômico e, não por coincidência, também os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas – tentam impedir a proliferação do armamento nuclear. Com a Coréia do Norte, sobe para nove o número de países com esse tipo de arsenal. Israel e Índia armaram-se nos anos 70, seguidos pelo Paquistão, que testou sua bomba em 1998. Foi o Paquistão, por sinal, que vendeu tecnologia nuclear à Coréia do Norte e ao Irã. As maiores potências acabaram por aceitar o arsenal de Israel (o país, que se estima ter 200 ogivas, jamais admitiu ter armas nucleares), da Índia e do Paquistão. Em parte, isso se deve ao fato de esses países terem se armado contra inimigos bem definidos e possuírem governos respeitáveis. Com a Coréia do Norte e o Irã, ambos ditaduras imprevisíveis, a situação se torna muito mais perigosa.
O temor causado pelos norte-coreanos pode levar a Coréia do Sul e o Japão a procurarem armamento equivalente. Os aiatolás atômicos provocariam uma corrida armamentista no Oriente Médio. Turquia e Egito já anunciaram planos de construir reatores nucleares, teoricamente para fins pacíficos. "A partir do momento em que uma nação sabe fazer o combustível nuclear, o custo para construir a bomba é de apenas algumas dezenas de milhões de dólares", disse a VEJA o americano Henry Sokolski, diretor executivo do Centro para Educação em Política de Não-Proliferação, em Washington. O maior incentivo para a popularização dos arsenais nucleares é justamente o fato de serem uma opção barata em comparação ao custo de montar e treinar um enorme Exército com armas modernas. A Coréia do Norte tem um Exército de 1,1 milhão de homens, o equivalente a 5% de sua população. Mas os soldados são mal armados e mal alimentados. Com a bomba, Kim Jong-Il ganha poder de barganha contra a pressão internacional para abrir seu regime fracassado. Por que o teste nuclear feito pela Coréia do Norte chamou tanta atenção? O teste nuclear subterrâneo realizado pela Coréia do Norte em outubro de 2006 ocorre após quatro anos de um progressivo aumento de tensão entre os governos do ditador norte-coreano Kim Jong-il e do presidente americano George W. Bush. O teste, além de confirmar o ingresso da Coréia do Norte no seleto time das potências nucleares, também pode alterar a geopolítica e a distribuição de poder no leste do continente asiático. Países como Japão e Coréia do Sul, tradicionalmente pacifistas, vêem agora, na vizinha Coréia do Norte, uma ameaça real. É possível que, a partir do teste nuclear norte-coreano, japoneses e sul-coreanos também passem a defender a necessidade de militarização, lançando programas armamentistas para a confecção de equipamentos com o mesmo poder destrutivo. |
se sentem ameaçados?
Ambos os países possuem um histórico de agressões e rivalidades relacionado à Coréia do Norte. Os agravantes começaram em 1910, quando o Japão anexou a região e tentou suprimir o idioma e a cultura locais. Com a rendição japonesa na II Guerra, em 1945, a península da Coréia é dividida em duas zonas de ocupação - uma americana, ao sul, e outra soviética, ao norte -, correspondendo ao antagonismo da Guerra Fria. Em 1948 são criados dois Estados: Coréia do Norte e Coréia do Sul, ambos reivindicando direito sobre todo o território coreano. Em 1950, os norte-coreanos invadiram o sul. A ONU enviou tropas - soldados americanos, em sua maioria - à região e ocupou a Coréia do Norte. A partir de então, a China entrou na guerra e, em 1951, conquistou Seul, a capital da Coréia do Sul. Nova ofensiva dos EUA forçou o recuo das tropas chinesas e norte-coreanas. Mais de 5 milhões de pessoas morreram em três anos de guerra. A trégua assinada em 1953 criou uma zona desmilitarizada entre as duas Coréias. Entre os acontecimentos recentes, sabe-se que, em junho de 2002, navios de ambos os países trocaram tiros. Quatro militares sul-coreanos e cerca de 30 norte-coreanos morreram. Um encontro ministerial, em agosto do mesmo ano, quebrou o mal-estar e os dois países começam a retirar minas da fronteira.
Qual o interesse da Coréia do Norte
em realizar o teste neste momento?
Acredita-se que o teste tenha sido realizado com a máxima urgência pelo líder norte-coreano Kim Jong-il, que aparentemente desistiu de negociar com autoridades americanas e da ONU. Há vários anos o país vem usando o desenvolvimento nuclear como pretexto para barganhar privilégios e ajuda financeira dos Estados Unidos e de alguns países europeus. Percebendo que suas exigências não seriam atendidas (a imprensa estatal norte-coreana já noticiava que os americanos apenas esperavam um momento propício para atacar e destruir as instalações nucleares do país) e que até mesmo a China - sua única aliada real - já havia aprovado sanções internacionais contra seu país, Kim antecipou-se e concretizou o teste de capacidade nuclear. Com a ação, ele tenta mostrar ao mundo que não estava blefando e garante, ao menos temporariamente, sua autoridade no ambiente doméstico.
O que se sabe a respeito do programa norte-coreano de desenvolvimento de armas nucleares?
O próprio governo norte-coreano anuncia abertamente suas pretensões de construir um arsenal bélico nuclear de alta tecnologia. Contudo, devido à extrema proteção em torno do projeto, é muito difícil para outros países verificarem as afirmações. Grande parte dos especialistas em controle de armamentos suspeita que o país realmente busque um programa armamentista nuclear ativo. O projeto teria sido inaugurado secretamente e interrompido, ao menos teoricamente, em 1994, ano em que Kim ratificou um acordo de não-proliferação de armas nucleares com os EUA. Porém, em 2002, o reator nuclear norte-coreano de Yongbyon voltou a funcionar e, em 2003, o país rompeu oficialmente o pacto assinado em 1994. Ao mesmo tempo, dois inspetores nucleares da ONU foram forçados a deixar o país. Desde então, é incerto o quanto teria avançado o trabalho no reator. Segundo especialistas consultados por agências internacionais, o reator seria capaz de produzir plutônio suficiente para abastecer uma ogiva nuclear por ano. A agência americana de inteligência (CIA), contudo, suspeita de um programa paralelo de Kim, capaz de enriquecer urânio suficiente para produzir "duas ou mais" ogivas por ano a partir de meados desta década.
Quantas armas nucleares
a Coréia do Norte já possui?
Como as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica, órgão ligado à ONU, foram interrompidas, é praticamente impossível informar com precisão o número de bombas nucleares que a Coréia do Norte já possui. Especialistas europeus estimam que o país tenha extraído plutônio suficiente para a produção de, no máximo, duas ogivas. Contudo, projeções americanas apontam que até dez ogivas nucleares funcionais já poderiam estar sob o controle de Kim. Esse elevado número de armas nucleares se deve, segundo a Casa Branca, à possibilidade de muitos dos 8.000 núcleos de combustível atômico armazenados pela Coréia do Norte em 1994 terem sido processados, desde então, para a confecção de bombas.
A Coréia do Norte poderia realizar
um ataque nuclear à distância?
Apesar de já ter testado com sucesso um dispositivo nuclear e de possuir mísseis transcontinentais capazes de percorrer milhares de quilômetros, especialistas em segurança consultados por agências internacionais acreditam que a Coréia do Norte ainda não possui um míssil nuclear funcional. Isso porque a ogiva nuclear tem que ser extremamente pequena para abastecer um míssil, o que exige um elevado grau de desenvolvimento em micro-eletrônica e nanotecnologia para sua confecção. Acredita-se que, ao menos por enquanto, a Coréia do Norte só poderia utilizar uma de suas bombas nucleares lançando-a de aviões, atividade que pode ser facilmente monitorada pelos americanos e seus aliados.
De que adiantou a recente convenção
internacional ratificada em 2005?
Apesar do novo acordo prever mais uma vez o fim da corrida armamentista nuclear (o que gerou bastante otimismo quando o texto foi ratificado), seu efeito prático foi quase inexistente. A principal razão do fracasso se deve ao fato de as partes mais sensíveis e complexas em relação ao impasse com a Coréia do Norte não terem sido incluídas na convenção. Por exemplo, não mencionou-se, no texto final, os programas nucleares secretos incentivados por Kim Jong-il. Além disso, o pacto não definiu o destino das instalações e bombas nucleares norte-coreanas já existentes e também não resolveu as discordâncias sobre futuras inspeções da ONU no país.
Qual é a conjuntura internacional
relacionada a essa crise?
As relações entre Estados Unidos e Coréia do Norte pioraram significativamente desde 2002, ano em que o presidente americano George W. Bush rotulou a Coréia do Norte como um país pertencente ao chamado "eixo do mal". A tensão aumentou em outubro do mesmo ano, quando a Casa Branca acusou a existência de um programa nuclear secreto promovido pelo ditador. Autoridades americanas voltadas para o combate ao terrorismo temem a instabilidade internacional que uma Coréia do Norte nuclear pode gerar - não só pelas ameaças no leste asiático, mas também pela possibilidade de venda de arsenal bélico nuclear para organizações extremistas internacionais. Suspeita-se que a intenção inicial norte-coreana era usar o argumento do desenvolvimento nuclear para pleitear um pacto de não-agressão com os Estados Unidos e o recebimento de ajuda financeira internacional. Agora que Kim Jong-il parece ter abandonado a intenção de negociar, tanto Estados Unidos quanto seus aliados precisarão repensar suas estratégias.