Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, outubro 19, 2006

Ulysses Guimarães por FH

- 14/10/2006 - 1:37


Artigo de Fernando Henrique Cardoso publicado pelo Globo nos 10 anos de morte de Ulysses Guimarães


Ainda hoje, passados dez anos, emocionei-me ao recordar os dias sombrios de outubro de 1992, quando começaram a circular os rumores sobre o desastre de helicóptero que atingiu Ulysses Guimarães, Severo Gomes, dona Mora e Maria Henriqueta.
Recém nomeado ministro do exterior, coube a mim a triste missão de representar o governo federal nos funerais. Na época, as sirenes soavam nas motocicletas que abriam caminho para meu carro e eu, triste pela morte dos amigos e sem jeito para atravessar as ruas da minha cidade de São Paulo sob o silvar incômodo dos guardas, escondia-me no fundo do automóvel e chorava.
Chorava e me recordava, como agora, dos amigos e dos líderes que foram arrebatados de nós em pleno processo de reconstrução da democracia.
Ulysses era um jatobá. Seus olhos azuis arregalados, sua impassividade na presidência da Câmara, sua energia na condução do partido, tudo nele era de alguém que mirava o horizonte, que tinha valores arraigados, que era firme nas decisões e nunca, mas nunca mesmo, deixava de ter como norte o interesse público, ao qual servia sem afetação.
Mas havia o outro Ulysses, o amigo, o companheiro. Conheci-o há longuíssimo tempo, no momento de sua tentativa, ainda no PSD, para viabilizar-se como candidato ao governo de São Paulo, durante a presidência de Juscelino. Meu pai, general Leônidas Cardoso, era deputado federal pelo PTB, aliado ao PSD. A seu pedido, percorri com Ulysses alguns bairros da cidade, em campanha que não vingou.
Décadas depois, em 1973, Ulysses, já líder nacional, procurou-me com João Pacheco Chaves no centro de pesquisa onde eu trabalhava, para ajudar o MDB a refazer seu programa.
Desde então tornei-me seu amigo. Amigo bem mais moço, inexperiente na política, mas admirador constante.
Quantas vezes almoçamos ou jantamos juntos, no hoje Piantella, com os companheiros de partido e, sobretudo, de conversa: Teotônio, Raphael de Almeida Magalhães, Pedro Simon, sempre Pacheco Chaves, depois, Severo Gomes.
Na conversa era mestre. Ouvia bem e conversava melhor ainda. Não o assustavam os licores e os vinhos, mesmo no almoço. Sem jamais perder a linha. Deixava escapar de vez em quando o latim que ele manejava e figuras de sua erudição (foi aluno de piano e de cultura de Mário de Andrade).
Se alguém lhe dissesse: “estive com fulano” (personagem importante), logo perguntava: “quanto tempo?” Porque Ulysses achava que a arte da política é dom dos “ruminantes”, nada de pressa (“sempre se encontra tempo, se a conversa é importante”), menos ainda de impulsos.
Poderia escrever páginas e páginas sobre as tiradas de Ulysses Guimarães, sobre seu papel – único, no comando – na redemocratização.
Não cabe ir além, neste espaço de jornal. Deixo só a palavra que resume minha relação com ele: admiração.
Severo era outro estilo. Irrequieto, brilhante, cultura à vista. Severo sabia de plantas, de Homero, de bois, do Marquês de Pombal, de empresas. Mas sabia sobretudo da amizade.
Pouca gente recebia tão bem, tão à vontade como Severo.
E, ao mesmo tempo, que trajetória! De empresário a ministro de Estado, sempre leal, preocupado com os que não tinham as posses que ele teve, e profundamente honesto e democrático.
Contarei só dois episódios que o caracterizavam. Em pleno governo Geisel, diante de um áulico, em uma festa, Severo, ministro da Indústria e do Comércio, disse o que pensava da política econômica do governo, em palavras que não eram exatamente as mais polidas. Chamado a confirmá-las, não hesitou, entregou a pasta e manteve a coerência. Eu, na época, estava em Cambridge, na Inglaterra. Enviei carta pessoal a ele, da qual infelizmente não tenho cópia, solidarizando-me com o amigo que estava, até aquele momento, em campo diverso.
Noutra feita, dois companheiros de trabalho meus, Chico de Oliveira e Frederico Marzuchelli, haviam sido presos e torturados no DOPS. Levei-os à casa de Severo, ainda ministro de Geisel. Ouviu-os e pediu-me uma carta relatando os fatos, o que fiz. Severo não só levou a carta ao Presidente como protestou e endossou o protesto contra a violência, sem se importar em agradar ou manter-se no cargo.
Fomos vizinhos de casa (casinhas de pescador) na praia de Picinguaba. Perto de onde o helicóptero afundou. Passávamos dias e noites – sempre Severo com muitos amigos – fazendo o que ele mais gostava: contando casos, fazendo brincadeiras com uns e outros e deixando transparecer seu espírito culto e generoso.
Ah! Eu não sei se ainda se fazem homens como estes. Ou, pelo menos, se nossa política dá espaço para espíritos como os de Ulysses e de Severo.
Que saudades! E que marcas eles deixaram na alma de todos nós que com eles tivemos a ventura de conviver.


FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

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