Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 21, 2006

Roberto Pompeu de Toledo Não o remédio, mas a doença


É o que o Brasil pode acabar levando, ao
importar dos EUA o regime de cotas raciais

O último número da revista Inteligência desnuda, numa série de artigos, o mal com que o Estatuto da Igualdade Racial, já aprovado no Senado e à espera de votação na Câmara, e a conseqüente obrigatoriedade de cotas nas universidades, no serviço público e em outros setores, ameaçam o Brasil. A revista esclarece, para quem ainda não percebeu, que o Estatuto, proposto pelo senador Paulo Paim (PT-RS), revoga o Brasil e institui outro país em seu lugar. Para começar, a tradição republicana de igualdade de todos perante a lei, consagrada na Constituição, é destruída em favor de "uma nova titularidade de direitos, cujo fundamento se encontra na raça, e não no indivíduo", segundo escreve a autora de um dos artigos, a cientista política Monica Grin. No plano das bases da sociedade, o Brasil é intimado a esquecer sua característica mestiça em favor da dualidade preto/branco. O que está em jogo, segundo o historiador José Roberto Pinto de Góes, autor de outro artigo da revista, é um "ambicioso projeto de reengenharia social, ao final do qual a sociedade brasileira terá substituído o orgulho da mestiçagem e da mistura pelo orgulho de ser negro ou de ser branco".

Não há dúvida, sempre é preciso repisar, que o Brasil se caracteriza por enormes disparidades e injustiças, e que políticas de ação afirmativa podem ser um recurso eficaz para combatê-las. O problema é basear tais políticas no conceito de "raça", e não de renda. "A idéia de raça é intrinsecamente má, foi concebida para discriminar, hierarquizar e oprimir", escreve Pinto de Góes. "O Estatuto da Igualdade Racial é uma lei racialista e promotora de diferenciações", acrescenta Monica Grin. Segundo a mesma autora, o Estado ganha, com essa lei, "amplos poderes de intervenção nas liberdades civis", pois passa a contar com "o poder de discriminar racialmente a sociedade".

Ao instituir legalmente a divisão do Brasil em branco e negro (qualquer nuance é ignorada, e os índios são esquecidos), o Estatuto da Igualdade Racial, além de colaborar para a fragmentação do país, cria para grande parte da população a dificuldade de encaixar-se de um ou outro lado. A historiadora Isabel Lustosa, autora de um terceiro artigo em Inteligência, confunde-se ao examinar a própria família: "Em que categoria caberiam meus tios paternos e maternos? Os com traços africanos e um antepassado escravo, mas que têm a pele clara, seriam considerados brancos? E os Lustosa, filhos de um comerciante de Cajazeiras que chegou a ter alguma fortuna, seriam considerados negros por causa da pele, apesar do cabelo escorrido e das perfeitas condições que tiveram para estudar em bons colégios?".

A idéia de reparação pelos malefícios da escravidão, um dos fundamentos do Estatuto, produz novas confusões. "Como um 'afro-brasileiro' pobre poderia convencer com plausibilidade seu vizinho 'branco' pobre de que ele é o culpado pela situação de pobreza em que ambos se encontram?", pergunta Monica Grin. Há o caso inverso do negro que foi possuidor de escravos. Pinto de Góes encontrou, na Sabará de 1830, uma quantidade de negros ou mulatos livres equivalente a três quartos da população total. Desses, 43% tinham escravos. Como indenizar os descendentes desses negros pelos males da escravidão se foram beneficiários dela? Os artigos de Inteligência contribuem com um choque de racionalidade contra a irracionalidade intrínseca aos argumentos baseados no conceito esquivo, falso e perigoso de "raça".

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Olhe-se o mundo em volta. A Europa convive mal e mal com suas populações muçulmanas. Os países muçulmanos eriçam-se contra os cristãos. Nos EUA, permanecem latentes as tensões entre brancos, negros, "latinos" e outros grupos. Em Israel, judeus e palestinos se estraçalham. No Líbano, cristãos e hezbollahs vivem em pé de guerra. Na Índia, hindus e muçulmanos. Na África, múltiplas religiões e etnias se estranham. Como será o mundo do futuro? A continuarmos na atual batida, a intolerância destruirá o planeta antes que o efeito estufa o faça. Se formos na direção oposta, vamos aprender a conviver com a diversidade e as sociedades terão diferentes religiões e cores de pele a conviver em paz. Quer dizer: o mundo ficará mais parecido com o Brasil. O Brasil conta com uma experiência que o qualifica como modelo de sociedade do futuro. No entanto, flerta com a opção de jogá-la fora.

A inspiração para a adoção das cotas "raciais" são os EUA. Seus defensores, mesmo sem saber, seguem a máxima do ex-embaixador em Washington e ex-chanceler (no regime militar) Juracy Magalhães, para quem "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". A quem acha que o problema do Brasil é parecido com o dos EUA, recomenda-se a leitura de autores como James Baldwin ou John Updike. Vai-se ver o que é racismo. Ao se comprar dos americanos o regime de cotas, é possível que se acabe levando não o remédio, mas a doença.

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