Independentemente de quem vença as eleições, uma espécie de mutação moral já se operou - e resta apenas conferir seu volume de contaminação na sociedade brasileira. Vai-se diluindo, até a rarefação, a capacidade de os cidadãos brasileiros se espantarem com a distorção absoluta dos fatos, com a inversão despudorada da realidade e, acima de tudo, com o destroçar dos critérios de distinção entre o que seja profundamente indecente - quando não crime notório - e o que seja a coisa mais normal e lícita do mundo. Antigamente a figura pública que praticasse um ato ilegal, imoral ou antiético procurava esgueirar-se da imprensa, fugir de entrevistas ou declarações, para tentar (mesmo sem o conseguir) não perder a credibilidade, às vezes conquistada em muitos anos de carreira política. Hoje, o reino da desfaçatez adquiriu tamanha pujança que os comprometidos com o fisiologismo fazem questão absoluta de lhes dar a maior transparência, considerando normal, racional a falta de escrúpulo total.
Assim que anunciou apoio à reeleição do presidente Lula, o governador de Mato Grosso e rei da soja, Blairo Maggi, reeleito em primeiro turno, obteve recursos de R$ 3 bilhões para o agronegócio, sendo R$1 bilhão para seu Estado e R$ 2 bilhões para o restante do País - segundo garantia de liberação do dinheiro dada a ele pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Maggi é vice-presidente nacional do PPS, partido que ele levou a desistir da candidatura presidencial própria (de Roberto Freire) para aderir à candidatura Alckmin - que naquele Estado ganhou de Lula no primeiro turno (por 54,8% a 38,6% dos votos válidos). Ao ser indagado se condicionara a troca de apoio, do candidato tucano ao petista, à liberação daquelas verbas, em lugar de se espantar com a insultuosa insinuação e fazer um mínimo de defesa da própria ética, o governador mato-grossense disse apenas: 'Isso é normal numa pauta de reivindicações, quando você faz apoiamento. Isso faz parte da política.' É que, na geléia geral de valores que se introduziu no País, a insultuosa acusação de venda de apoio, de voto, de consciência pode virar, aos ouvidos do 'insultado', até um elogioso reconhecimento de capacidade de negociação política, em benefício do povo - mesmo que aí também haja uma vantagenzinha para o próprio negócio, pois, afinal, ninguém é de ferro, pô.
Isso me faz lembrar uma cena do filme A Noviça Rebelde. Irritado com o elogio aos nazistas que ouvia de um áulico chefete vienense, às vésperas da anexação (Anschluss), disse-lhe o capitão Von Trapp, um antinazista e fervoroso patriota austríaco: 'Tenho certeza de que quando os alemães entrarem em Viena o senhor será o primeiro a acompanhar a tropa.' Tendo o puxa-saco dos nazistas aberto um orgulhoso sorriso e agradecido a Von Trapp por aquelas palavras, disse-lhe o capitão: 'Perdão, eu achava que o estava ofendendo.'
As futuras antologias de segurança pública certamente comentarão o arremedo de investigação tragicômico, surrealista, que é a apuração que a Polícia Federal (PF) faz do caso dossiêgate. Há um mês o chefe da PF, o ministro-criminalista Thomaz Bastos, anunciava que já estava praticamente esclarecido o episódio do R$ 1,75 milhão encontrado num hotel, com agentes do PT, destinado à compra de um dossiê fajuto envolvendo o candidato tucano ao governo de São Paulo (o governador eleito José Serra) com os sanguessugas. Depois o ministro-criminalista, que tentara de todo jeito (sem o conseguir) censurar a divulgação da foto com a dinheirama viva, avisou que só depois das eleições seria possível esclarecer o caso. E o presidente Lula deu a entender que era o maior interessado nessa apuração, nem que pudesse demorar uns dez anos...
O grande argumento usado em favor da inocência do presidente no episódio - apesar de nele estarem envolvidos correligionários e amigos íntimos seus, de mais de 30 anos - é o da inversão do princípio do cui prodest, em que se busca a autoria do crime com base na investigação de quem dele melhor se aproveita. Só que os petistas inovaram, criando o princípio do cui non prodest, ou seja, o que isenta de culpa aqueles que acabaram não tirando vantagem do ilícito. Adotando esse princípio, inocentam-se todos os participantes de assaltos abortados pela polícia. E por que responsabilizar o juiz Lalau por desvios de dinheiro público, se ele se deu tão mal com aquela grande obra pública superfaturada? Então, culpada é a sociedade, que se deu bem livrando-se de um corrupto...
Quando o presidente do TSE, ministro Marco Aurélio Mello, fez aquele lúcido pronunciamento sobre o 'país do faz-de-conta', prometendo o maior rigor na cobrança de respeito à Lei Eleitoral, os condutores da campanha reeleitoral do presidente ficaram alertas. No começo faziam divisões de horário, separando o que era expediente de governo do que era campanha. Aos poucos, acostumando-se com a falta de sanções concretas da Justiça Eleitoral à justaposição de papéis (o de governante e o de candidato), os palácios presidenciais do Planalto foram se transformando em comitês eleitorais desbragados, com ministros e funcionários atuando a serviço eleitoral full time, sem nenhuma cerimônia. E chegou a ser até hilariante (se já dá para julgar crime engraçado) aquela reunião do presidente com os cantores evangélicos, na qual eles não cantaram (para evitar que a reunião virasse 'showmício', proibido por lei), mas o presidente, em pleno expediente e nas instalações de governo, pronunciou veemente discurso eleitoral, chamando seu adversário de 'samba de uma nota só' (esquecendo-se do 1,75 milhão de notas que aguardam explicação). É isso.
Entrevista:O Estado inteligente
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sábado, outubro 14, 2006
Reino da desfaçatez Mauro Chaves
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