Gilberto de Mello Kujawski, O Estado de S. Paulo (12/10/06)
Foram tantas as surpresas, tantos dados contraditórios, tantos resultados chocantes no primeiro turno destas eleições de 2006 que é preciso dar um tempo antes de começar a entender. A eleição de Paulo Maluf, Jader Barbalho e de alguns mensaleiros foi revoltante, assim como é incompreensível a não-eleição de Antônio Carlos Biscaia (PT-RJ), a liderança decisiva na condução da CPI dos Sanguessugas. Já a vitória de Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) e de Alceni Guerra (PFL-PR) foi a reparação da injustiça clamorosa de que foram vítimas há tempos. Roberto Requião, governador do Paraná, despachado para o segundo turno, teve o castigo merecido por sua empáfia e arrogância. Yeda Crusius, que é paulista, a favorita no Rio Grande do Sul, brilhou no primeiro lugar, seguida pelo petista Olívio Dutra, dos hórridos bigodes. Denise Frossard, a prima-dona do PPS, deu um ensurdecedor dó de peito ao pregar voto nulo em Alckmin e César Maia, o Brucutu do PFL, provocou desconfianças ao correr tão açodado atrás de Clodovil. Pior do que ambos só o boquirrotismo irritante e irresponsável de Ciro Gomes.
Quanto à virada na eleição para presidente da República, só os institutos de pesquisa, sempre os últimos a saber, foram surpreendidos. Os institutos de pesquisa são conservadores, nunca inovam as expectativas, e o mais conservador é o Datafolha. O verdadeiro termômetro das pesquisas para presidente não são os números, são os nervos de Lula. Os índices sempre estão a seu favor, mas basta o petista entrar numa entrevista com a imprensa, ou num debate, para sua tensão subir incontrolavelmente. Por que será? Desde o início da campanha, para o observador independente, que não vai automaticamente atrás das pesquisas, ficou patente que Lula não estava com aquela bola toda.
Pois bem, em meio à barafunda do cenário eleitoral após o primeiro turno, destacam-se alguns fatos novos, totalmente inéditos, que se encadeiam numa linha de coerência que nem todos estão percebendo. Refiro-me ao fracasso dos 'dinossauros', os chefes das velhas oligarquias regionais que dominam os Estados da Federação desde tempos imemoriais. A falência mais escandalosa foi a de ACM na Bahia, dando chance à vitória no primeiro turno do petista Jaques Wagner, com aquele ar de barão de beira-rio. Mas ACM não está sozinho. Ney Suassuna, do PMDB, perdeu seu lugar de senador pela Paraíba. Severino Cavalcanti, Guinness das maiores trapalhadas, dono de considerável curral eleitoral em Pernambuco e ex-presidente da Câmara, ficou chupando o dedo na eleição para deputado. Mão Santa, do Piauí, ficou muito atrás do petista Wellington Dias. E - quem diria? - José Sarney, se não tomasse um suadouro e não comesse muita poeira nas estradas que não soube asfaltar, esteve a ponto de ser destronado no Amapá.
Sim, os velhos caciques estão perdendo poder e influência, com poucas exceções. Já não comandam com aquela segurança os ventos e as marés eleitorais. As novas gerações, entretidas horas por dia na internet, desligadas de partidos e ideologias, bastante descrentes em relação à política e aos políticos de molde tradicional, fogem ao controle das lideranças tradicionais. Aqui é que mora o segredo que os cientistas políticos ainda não perceberam. A internet, manejada pela jovem geração, transformou-se numa ferramenta política mais eficaz que a propaganda dos candidatos, o horário eleitoral ou o prestígio dos coronéis. Nivela classes e regiões. Trata-se de mudança geracional. Para quem não sabe, a luta entre as gerações é mais importante e decisiva que a luta de classes, e se declara, inclusive, no seio das próprias classes, dividindo-as. Ainda é cedo para concluir, mas o que se esboça entre as novas gerações é a mudança qualitativa do voto no País. O voto induzido por partidos e ideologias, ou imposto pelos caciques, cede lugar ao voto de opinião, o voto de convicção pessoal, desligado dos currais eleitorais e também de partidos e ideologias. A nova geração não é cética, nem cínica, nem indiferente, apenas está à procura de um instrumento de pesquisa e expressão política adequado aos seus padrões de maior autonomia intelectual e social. Ainda recentemente a televisão exibiu um grupo de rapazes e moças do Nordeste protestando com veemência contra a venda de votos, tão difundida naquela região entre seus pais e avós.
Partindo desta premissa - a tendência ao voto de livre convicção, desvinculado de partidos, ideologias, caciques -, torna-se frívolo especular se Lula não ganhou no primeiro turno em razão dos escândalos ou da ausência do debate da Globo. Lula se enfraqueceu junto às novas gerações porque Lula é uma fraude. Ora posa de energúmeno enfurecido (como no primeiro turno), ora de 'Lulinha paz e amor' (como agora), não fala coisa com coisa, censura Collor, elogia Collor, tem ímpetos de fechar o Congresso (em conversa com Eugênio Staub), depois louva o Congresso, desanca a imprensa, bajula a imprensa. Além de corromper o português (às vezes, deliberadamente), Lula corrompe a palavra, que em sua boca é sempre dúplice. Pelo menos desta corrupção, do português e da palavra, ele não escapa.
A força de Geraldo Alckmin está em se apresentar como ele é. Sem demagogia, sem teatro, sem aquela cansativa comédia do 'carisma' lulista. O 'chuchu' já fez Lula engasgar no primeiro turno. É um político de cara limpa, olhos nos olhos, palavra direta, sem circunlóquios nem delírios.
Lula, ao contrário, sempre ambíguo, quer passar pelo que não é. 'Paz e amor'? Sua natureza é o oposto. Explosivo, autoritário, fértil em palavrões. Palavrão tem hora. Seu abuso denota impotência.
Eis aí mais uma razão para não votar em Lula, um hábil e perigoso comediante, 'pai dos pobres e mãe dos ricos'.
P. S. - Resultado do primeiro debate: Alckmin debateu, Lula se debateu. Dez a zero para Alckmin.
Gilberto de Mello Kujawski, jornalista e escritor, é membro do Instituto Brasileiro de Filosofia
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