Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, outubro 19, 2006

De te fabula narratur, já dizia Marx



Artigo - *Rolf Kuntz
O Estado de S. Paulo
19/10/2006

Impossível assistir ao espetáculo - primeiro o delírio, depois a pancadaria - do traslado do esquife de de Juan Domingo Perón sem lembrar a advertência de Marx ao leitor alemão do Capital: o modelo descrito no livro podia ser o da Inglaterra, onde o capitalismo se havia desenvolvido mais amplamente, mas a experiência inglesa apenas antecipava a de outros países. “De te fabula narratur”, escreveu Marx no prefácio, para liquidar a alegria de quem se julgasse livre daquele pesadelo. A história contada no livro seria repetida, com personagens diferentes, noutros países sujeitos às leis do capital.

Há quatro anos, quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Palácio do Planalto, importantes publicações, na Europa e nos Estados Unidos, noticiaram a eleição de um líder populista no Brasil. A qualificação pareceu errada e preconceituosa mesmo a brasileiros que não haviam votado em Lula. Jornalistas do mundo rico mais uma vez descreviam a situação brasileira com base em clichês fáceis e falsos. Apoiado no trabalho de seu primeiro ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e do chefe do Banco Central, Henrique Meirelles, o novo presidente conseguiu diferenciar sua imagem da figura tradicional do político latino-americano. Não deixou de ser uma personagem um tanto folclórica, mas conquistou um tratamento diferenciado e respeitoso.

O populista apontado pela imprensa estrangeira, nas matérias publicadas há quatro anos, manifesta-se agora, sem disfarce, numa campanha que parecia impensável no Brasil do século 21. A campanha é espantosa tanto pela estratégia escolhida quanto pelo êxito aparente. É notável não só pelo número de patranhas contadas pelo presidente e por seus aliados, mas também pela baixa qualidade do discurso.

Atribuir aos adversários a intenção de privatizar o Banco do Brasil e a Petrobrás já seria suficiente para deixar boquiaberta qualquer pessoa razoavelmente informada e capaz de juntar duas idéias. Mas o mais chocante é que alguém possa ter concebido, em 2006, uma campanha baseada na demonização das privatizações. Não há sequer o argumento, usado razoavelmente noutros tempos, sobre o valor estratégico da intervenção estatal em certas áreas. Simplesmente não há argumentos: o discurso é tão vazio de racionalidade quanto a pregação do racismo, da guerra santa ou do nacionalismo do século 19.

O mesmo apelo à irracionalidade aparece no esforço para semear a rivalidade e o ódio entre regiões, como se esta eleição fosse uma disputa entre o Brasil menos desenvolvido e São Paulo. O recado efetivo do presidente, ao acusar a elite paulista de odiar o Norte e o Nordeste, não foi contra um grupo concreto e identificável por suas ações. Quem é essa elite? Em que se diferencia dos tais paulistas que trabalham, que acordam cedo e que são bonzinhos, segundo a ressalva acrescentada por Lula? Os pregadores do racismo, nos Estados Unidos, nunca deixaram de reconhecer a existência de negros bonzinhos e respeitosos. Mas a mensagem eficiente foi sempre a do ódio racial, a do apelo à irracionalidade e aos sentimentos mais perigosos. E por que a elite hedionda é apenas a paulista? Por que é mais nociva que os poderosos do Norte e do Nordeste - aqueles que, de fato, sempre mantiveram e continuam mantendo no atraso dezenas de milhões de brasileiros?

O presidente e seus companheiros negam os fatos, também, quando dizem que seus adversários só sabem privatizar. Fantasiam, quando negam que um enorme trabalho de reforma econômica e institucional foi realizado nos anos 90 e no começo desta década. Inventam, quando ocultam que os instrumentos da política antiinflacionária estavam prontos e disponíveis ao assumirem o governo. Violam os fatos, quando dão a entender que a atual produção de petróleo foi um resultado de seu trabalho. Tentam apagar até a história da Petrobrás e de seu longo esforço para levar o País à auto-suficiência. Para que apagar e recriar a história, se julgam ter uma porção de realizações importantes para mostrar ao eleitorado? Talvez porque saibam que em muitas áreas importantes - como na difusão do ensino básico - sua contribuição foi apenas um pequeno acréscimo porcentual ao que estava feito.

O Lula que se revela sem disfarce nessa campanha é cada vez mais parecido com Evo Morales, com Hugo Chávez e com outras figuras típicas do populismo sul-americano. Ao defendê-los, ele defende, de fato, a si mesmo. Quanto mais será revelado, se for reeleito?

*Rolf Kuntz é jornalista

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