Coisas da Política
17/10/2006
Augusto Nunes
augusto@jb.com.br
O mais abjeto dos pecados capitais
O embaixador João Augusto de Médicis, subsecretário do Serviço Exterior do Itamaraty, telefonou ao cônsul-geral do Brasil em Milão, na Itália, para transmitir a instrução. Certa jovem que prestava serviços à embaixada em Roma deveria ser prontamente transferida para a representação em Milão. O cônsul ponderou que, conforme portaria vigente havia alguns anos, auxiliares contratados localmente não poderiam ser admitidos sem a prévia realização de um concurso.
Médicis replicou que se tratava de uma determinação do presidente da República. A moça, argumentou, era filha de um jornalista já veterano, bem relacionado e - mais relevante que tudo - amigo de Fernando Henrique Cardoso. Médicis só não contou que ele próprio se aproximara do pai da indicada quando ambos ocuparam salas na embaixada em Roma.
Conhecido pelo apreço à ética, o cônsul insistiu no concurso. O subsecretário sibilou a proposta: que o interlocutor simulasse um concurso, caso preferisse. Mas contratasse a moça sem demora. Impossível, reagiu nosso homem em Milão. Negava-se a chancelar procedimentos legais e burocráticos de um concurso cujo desfecho seria fraudulento. Se contrariasse o código da decência, ele se sentiria desconfortável aos olhos dos demais funcionários e de outros brasileiros interessados em candidatar-se a uma vaga.
O embaixador reiterou a instrução em tom de ultimato. O cônsul recusou serenamente o papel de cúmplice. E demarcou a fronteira: só contrataria a filha do jornalista se recebesse um telegrama do Ministério das Relações Exteriores, com a oficialização da ordem. Dias depois, chegou o diktat telegráfico. Mais algumas horas, e ali pousou a jovem. Portadora de problemas de saúde que lhe dificultavam o comparecimento ao consulado, por lá ficou. Recebendo pontualmente o pagamento em dólares.
Essa demonstração miúda de protecionismo explícito espantou o jovem diplomata, hoje embaixador aposentado. Mais espantosos ainda seriam os desdobramentos da história. Embora beneficiário direto do compadrio, o jornalista nunca se considerou devedor do presidente que lhe apadrinhara a filha.
Quando FH deixou o poder, começou a criticá-lo obsessivamente. Nunca mais parou. Hoje, consumada a tardia (e sempre lucrativa) conversão do jornalista ao lulismo, os ataques insultuosos são quase diários. Gente assim odeia o Estado enxuto. Ama o Estado-patrão. Fernando Henrique Cardoso, um cavalheiro, demorou a constatar que lidara com alguém que sofria de impossibilidade da gratidão.
Numa terra onde vigoram, cada vez mais exuberantes, a lei de gerson, a omertá da companheirada ou o código de paulobetti, é compreensível que a ingratidão se dissemine endemicamente. Feito praga, e praga antiga, que esfaquear mão estendida, no Brasil, tem a idade da primeira caravela. A coisa piora no pântano da política, ensinou a meu pai (que lembrava com freqüência a lição) o amigo Eduardo do Amaral Lyra.
Homem bonito, médico de fina estirpe, político de primeiríssima, foi prefeito de Itápolis, no interior de São Paulo, e depois deputado estadual. Um dia, numa conversa a dois, meu pai confessou-se intrigado com a virulência das palavras usadas contra o amigo por um político de Itápolis. O que houvera?, quis saber. "Confesso que não sei", murmurou o doutor Lyra. "Nunca fiz nenhum favor a ele".
É isso. FH pagou pelo crime de socorrer um jornalista em apuros. O furor retórico nada tem de ideológico. É fruto da ingratidão, o pior dos defeitos humanos. Que é filha da inveja, o mais abjeto dos pecados capitais.