Artigo - Roberto DaMatta |
O Globo |
9/1/2008 |
Neste início de um Ano Novo, repleto de velhos e cabeludos problemas (como havia acentuado na última crônica), que o leitor me permita fazer a pergunta aparentemente banal, mas difícil de ser respondida: quem é você? Em outras palavras, como nos definimos neste mundo? Ruim de estatística - só não fui reprovado no quesito "métodos quantitativos" em Harvard por bondade de um instrutor e, no meu exame de qualificação, por um velho e bondoso professor de Antropologia que, diante de minha ignorância relativa à ciência das quantidades, aconselhou-me a contratar um estatístico quando precisasse de lidar com números -, fiz uma breve pesquisa. Perguntei a algumas pessoas - viu como sou ruim de números? - a pergunta acima. A maioria me respondeu dizendo ser homem ou mulher. Quase todos mencionaram suas idades, profissões, alguns gostos, e alguns responderam com aquele bom senso capaz de derrotar qualquer pesquisador quando ele faz inquéritos muito gerais: depende da situação, ora bolas! É isso! Por exemplo: este mundo previsível em que vivemos vai às garras se faltar energia elétrica. Na memória de minha geração ficou o blecaute de mais ou menos 8 horas, ocorrido entre 13 e 14 de julho de 1977, na cidade de Nova York. Como os americanos são obcecados com números, eles mediram tudo: dos 1.616 saques às 3.776 pessoas presas, sem esquecer os prejuízos de mais de 300 milhões de dólares. Ademais, correu a interessante especulação não quantificada e até hoje discutida de que, na ausência de luz, as pessoas passaram o tempo descobrindo (ou redescobrindo) as iluminações interiores da sexualidade como um ótimo derivativo quando o mundo exterior se enche de trevas. Ou seja, no escuro, o povo cosmopolita de New York, a cidade tida como a mais moderna do mundo, usou o velho e bom sexo como um derivativo para a ausência da televisão como manda a antiga piada sobre o fazendeiro de interior que, por causa disso, tem uma dúzia de filhos. Seria correto reiterar proverbialmente que "a situação faz o ladrão", como estamos fartos e um tanto enlouquecidos de saber, examinando o cenário político brasileiro nestes tempos de sólida estabilidade monetária e de insólita sinceridade política? Ou eu ando lendo mal a crônica financeira: a mais "real", a mais prestigiosa e a mais séria porque lida com "fatos" e "números"? Que discute tudo isso que, afirma-se, tem conseqüências? Se o contexto inventa ladrões, teria ele a capacidade de engendrar a velha mendacidade que é parte estrutural do nosso estilo de governar e promover a mentira? O presidente Lula diz que a CPMF era assunto encerrado e que não haveria aumento de impostos para recuperar os dinheiros perdidos, já incorporados num orçamento antes nunca visto, que contava com os ovos no fiofó da galinha. E, logo neste início de ano, os ministros da Fazenda e do Planejamento apresentam o "pacote Lula", pacote que, além de ressuscitar o estilo autoritário (sem negociação e com o pressuposto de não querer dividir o poder e ouvir a sociedade), e a julgar pelos comentários do entendidos, mais parece um embrulho de quitanda e será certamente reformulado. O tal "charme radical" que tanto deleitava um amistoso editor de velha linhagem aristocrática paulista vem exatamente da crença de que é mesmo possível traçar linhas na água. De segurar de uma vez por todas esse "quem é você?" numa só definição. Numa individualidade indivisível e irrepartível, quando sabemos que todos somos divisíveis por múltiplos interesses e relações que engendram as tais "situações" e os tais "contextos" que reafirmam a justiça ou, como sempre ocorre no Brasil, confirmam a desigualdade como padrão e a injustiça como valor. Não é à-toa que em toda parte encontramos as noções de corpo e alma, cabeça e coração, razões do Estado e da sociedade, como elementos capazes de responder à minha pergunta de modo contraditório, levando ao terreno do paradoxo e da confusão. Como alma somos todos puros e altruístas; mas, como corpos, trata-se de uma outra história... |
Entrevista:O Estado inteligente
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